quinta-feira, 1 de março de 2018

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine III — A bom bispo, mau bispado

Victor Hugo - Os Miseráveis


Primeira Parte - Fantine

Livro Primeiro - Um Justo




III — A bom bispo, mau bispado 

Apesar de ter convertido a carruagem em esmolas, nem por isso deixava o bispo de fazer as suas visitas pastorais, visitas que na diocese de Digne eram infinitamente difíceis por causa das suas péssimas comunicações e da má natureza do terreno para quem viaja. Em toda diocese, que se compõe de trinta e duas abadias, quarenta e um vicariatos e duzentos e oitenta e cinco curatos, não era empresa fácil, mas o prelado conseguiu levá-la a cabo.

Quando as visitas eram nas vizinhanças, ia a pé; na planície, ia num carrinho coberto de vimes e, na montanha, a cavalo. As duas mulheres acompanhavam-no sempre, exceto quando a jornada era em extremo difícil para elas, porque então ia sozinho.

Certo dia, entrou em Senez, antiga cidade episcopal, montado num jumento, porque a sua bolsa, naquela ocasião pouco abastecida, lhe não permitira outro modo de locomoção. O maire da cidade, recebendo-o à porta do paço, não ocultou o seu descontentamento vendo-o apear-se da insignificante cavalgadura, e alguns burgueses que se achavam também presentes chegaram até a rir.

— Senhor maire, e vós, senhores — disse o bispo — sei muito bem o que vos desagrada; acham que é demasiada soberba num pobre padre como eu servir-se para o seu transporte do mesmo meio que usou Jesus Cristo! Afirmo-lhes, porém, que o fiz por necessidade e não por vaidade.

Nas suas visitas, mostrava-se indulgente e afável com todos os que se lhe apresentavam. Conversava mais do que pregava. Não ia nunca muito longe buscar os argumentos e modelos que desejava apresentar. Aos habitantes de uma localidade citava os da localidade vizinha.

Nos cantões, cujos moradores se mostravam pouco compadecidos para com os necessitados, dizia:

— Vejam os habitantes de Briançon. Concederam aos indigentes, às viúvas e aos órfãos, licença de mandar ceifar as suas searas, três dias antes de mais ninguém. Por isso é uma terra abençoada por Deus. Só lá de cem em cem anos é que se ouve falar num assassínio.

Nas aldeias onde os pequenos lavradores se viam a braços com grandes dificuldades para acudir ao serviço das colheitas, dizia:

— Olhai para o que fazem os de Embrun. Na ocasião das ceifas, se algum pai de família, que tem os filhos alistados no exército e as filhas a servir na cidade, adoece, vendo-se assim na impossibilidade de fazer a ceifa, o pároco recomenda-o na ocasião da prática, e no domingo, depois da missa, todos os habitantes da aldeia, homens, mulheres e crianças, se dirigem para o campo do pobre homem a fazer-lhe a colheita e a transportar-lhe a palha e o grão para a eira!

As famílias a quem questões de partilhas e outros interesses trazia em desunião, dizia:

— Olhai para os montanheses de Devolny, terra tão selvática que nem de cinquenta em cinquenta anos se ouve o cantar do rouxinol! Pois ali, quando morre o chefe de qualquer família, os rapazes vão procurar fortuna noutra parte e deixam todo o património às irmãs para que elas possam fazer bons casamentos.

Aos habitantes dos cantões, amigos de pleitos e questões que desbaratavam os seus haveres em papel selado, dizia:

— Olhai para aqueles bons aldeões de Queyras. É uma povoação de três mil almas e, louvado seja Deus, vivem como numa pequena república. Não sabem o que seja um juiz, um processo ou um escrivão. O maire é quem faz tudo. Reparte o imposto, colecta cada habitante o que em consciência lhe parece que deve pagar, julga todas as causas gratuitamente, preside às partilhas entre os membros de uma família sem cobrar emolumentos, profere sentenças sem levar nada às partes, e todos lhe obedecem, porque é um homem justo no meio de uma população de homens simples.

Nas aldeias em que não encontrava mestre-escola, dizia, citando ainda como exemplo os habitantes de Queyras:

— Quereis saber o que eles fazem? Como um lugar de doze ou quinze fogos não pode só por si sustentar um mestre, combinam-se com os habitantes de outros lugares e assim arranjam, cotizando-se entre si, mestres que vão de lugar em lugar, demorando-se oito dias aqui, dez além, dando lições a quem delas se quer aproveitar. Os mestres, andam de feira em feira, como eu mesmo já presenciei, e dão-se a conhecer segundo o número de penas que trazem na fita do chapéu. Os que só ensinam a ler, trazem uma pena; os que ensinam a ler e a contar, usam duas e os que ensinam a ler, a contar e latim, usam três e são considerados grandes sábios. É uma vergonha ficar toda a vida ignorante, fazei como os de Queyras.

Assim discursava o bom prelado, com gesto grave e paternal, inventando parábolas quando não tinha exemplos, conciso na frase, opulento em imagens, persuasivo e convicto, singelo e eloquente, como outrora a eloquência de Jesus Cristo, convincente e persuasiva




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Enquanto existir nas leis e nos costumes uma organização social que cria infernos artificiais no seio da civilização, juntando ao destino, divino por natureza, um fatalismo que provém dos homens; enquanto não forem resolvidos os três problemas fundamentais a degradação do homem pela pobreza, o aviltamento da mulher pela fome, a atrofia da criança pelas trevas; enquanto, em certas classes, continuar a asfixia social ou, por outras palavras e sob um ponto de vista mais claro, enquanto houver no mundo ignorância e miséria, não serão de todo inúteis os livros desta natureza. 

Hauteville House, 1862




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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.


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