segunda-feira, 2 de abril de 2018

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine IV — As palavras semelhantes às obras

Victor Hugo - Os Miseráveis


Primeira Parte - Fantine

Livro Primeiro - Um Justo




IV — As palavras semelhantes às obras 

Dotado de gênio prazenteiro e afável, conversava e ria alegremente com todos e em especial com as duas mulheres, companheiras— únicas do seu modesto viver, a cujas inteligências adaptava as suas conversas Quando ria, o seu riso parecia o de uma criança.

Magloire tratava-o quase sempre por minha grandeza. Certa vez, o bispo levantou-se da sua poltrona e dirigiu-se à estante para tirar um livro, mas como era baixo e não pôde chegar-lhe, virou-se para a criada e disse-lhe:

— Magloire, traga-me uma cadeira, porque a minha grandeza não chega àquela prateleira.

Entre as visitas que o bispo de Digne recebia na sua residência episcopal, contava-se a da condessa de Lô, sua parente afastada.

Todas as vezes que se encontravam, nunca aquela dama perdia a ocasião de lhe enumerar o que ela apelidava as esperanças dos seus três filhos Consistiam estas na próxima herança dos numerosos ascendentes da condessa, de quem seus filhos eram naturais herdeiros e que não prometiam longa duração. O mais novo, por morte de uma segunda tia, ficaria com um rendimento superior a cem mil francos, o segundo herdaria de um tio o título de duque; o mais velho sucederia ao avô no pariato.

O bispo, ordinariamente, limitava-se a escutar em silêncio as inofensivas e desculpáveis expansões do seu amor de mãe Todavia, numa das ocasiões em que a condessa de Lô repetia a enumeração de todas aquelas heranças em perspectiva, reparando no ar pensativo e distraído com que o prelado a escutava, interrompeu-se e disse-lhe um tanto despeitada:

— Que tem, meu primo? Parece que não presta atenção nenhuma ao que eu digo.

— Estou a pensar numa coisa singular que li — respondeu o bispo — e que segundo me parece, pertence a Santo Agostinho: «Ponde a vossa esperança naquele a quem ninguém substituiu.»

Outra vez, recebendo uma carta em que lhe participavam a morte de um fidalgo da terra, na qual, além das dignidades do defunto, pomposamente se ostentavam todas as qualificações feudais e nobiliárias dos seus parentes, exclamou:

— Que largas costas tem a morte! Como carrega, sem se queixar, tamanha carga de títulos, e que grande habilidade têm os homens para fazerem do túmulo instrumento da sua vaidade!

Quando se lhe apresentava ensejo, tinha sempre pronto um dito, que encerrava um sentido sério.

Um ano, pela quaresma, chegou à cidade um eclesiástico ainda novo que pregou na catedral. O assunto do seu tema foi a caridade e discursou eloquentemente sobre o assunto. Convidou os ricos a auxiliarem os pobres, a fim de evitarem o inferno, que ele pintou o mais horroroso que pôde e alcançarem o paraíso, que mostrou com as cores mais deliciosas e agradáveis.

Entre o auditório, encontrava-se naquela ocasião um abastado negociante, chamado Géborand, o qual, depois de ter ganho dois milhões em empresas fabris, se retirara do comércio para se entregar com mais ou menos moderação ao tráfico usurário.

Nunca na sua vida, Géborand dera esmola a um infeliz, mas depois deste sermão viam-no, todos os domingos, aproximar-se das cinco ou seis velhas que mendigavam à porta da catedral e dar um soldo para elas repartirem entre si.

Um dia, indo o bispo a passar quando o negociante dava a uma das infelizes a costumada esmola, voltou-se para a irmã e disse-lhe, sorrindo:

— Ali está o senhor Géborand a comprar um soldo do paraíso!

Quando se tratava de caridade, não recuava mesmo diante de uma recusa, pois tinha sempre pronta qualquer resposta que obrigava a refletir.

Uma vez, em certa reunião, tendo aberto um peditório para os pobres, aproximou-se do velho e avarento marquês de Champtercier, singular personagem que sabia o segredo de combinar o seu realismo exaltado com ideias ultra-voltarianas (esta variedade existiu) e disse-lhe, tocando-lhe no braço:

— E V. Ex.ª, senhor marquês, não contribui também?

O marquês voltou-se e respondeu com modo brusco:

— Eu também tenho os meus pobres, senhor bispo.

— Nesse caso, rogo-lhe que mos dê.

Um dia, na catedral, pregou este sermão:

«Meus queridos irmãos e amados ouvintes, há em França um milhão e trezentas e vinte mil casas de habitação de camponeses, as quais só têm três aberturas; um milhão oitocentas e dezassete mil, que têm apenas duas, uma porta e uma janela; e, finalmente, trezentas e quarenta e seis mil cabanas, cuja única abertura é a porta. A causa disto é o denominado imposto das portas e janelas. Imaginai um montão de pessoas, uma família numerosa composta de velhos e crianças, vivendo juntas em cada um desses domicílios sem ar nem luz e pensai nas febres e epidemias a que isto pode dar origem! Oh, dá Deus o ar aos homens e a lei vende-lho! Não acuso a lei, mas bendigo a Deus! No Isera, no Var, nos altos e baixos Alpes, os camponeses, que nem carros de mão possuem, transportam os estrumes às costas; não têm candeeiros nem velas para os alumiar e para obterem luz queimam paus e fragmentos de cordas embebidos em resina. O mesmo acontecendo em todos os lugares do Alto Delfinado. Fabricam pão para seis meses e cosem-no com o estrume seco das vacas. No Inverno, corta-se o pão a machado e conservam-no de molho de um dia para o outro para se poder comer. Compadecei-vos, meus irmãos, vendo quantos infelizes sofrem em torno de vós!»

Provençal de nascimento, o bispo familiarizara-se com todos os dialetos das regiões meridionais. Falava com extrema facilidade tanto o do baixo Languedoc, como o dos Baixos Alpes e do Alto Delfinado. Isto agradava ao povo e contribuía bastante para lhe granjear simpatias. No campo, na cidade, ou na mais humilde choupana das montanhas, achava-se como em sua casa. Sabia dizer as coisas mais complicadas na linguagem mais simples. Sabendo falar a todos, entrava em todas as almas.

Além disto, a todos tratava de igual modo, fossem das camadas superiores ou das inferiores. Jamais formulava juízo desfavorável a respeito do que quer que fosse ou condenava sem atender às circunstâncias. Costumava dizer:

«Vejamos o caminho por onde a culpa passou».

Não obstante ser um ex-pecador, como a si mesmo se denominava, nunca professava as asperezas do rigorismo. A sua doutrina, que abertamente observava, a despeito da austeridade inflexível, podia, com pequena diferença, resumir-se no seguinte:

«O homem tem sobre si a carne, que é o seu fardo e a sua tentação. Ela arrasta-o e ele cede-lhe. O seu dever é vigiá-la, contê-la, reprimi-la e não lhe obedecer senão na última extremidade. Essa obediência pode ainda ser culposa, mas a culpa assim é venial. É cair, mas cair de joelhos e por isso terminar em oração.»
«Ser santo é uma exceção; a regra é ser justo. Errai, caí, pecai, mas sede justos».
«Pecar o menos possível é o dever do homem, não pecar nunca é o sonho do anjo. Tudo o que é terrestre está sujeito ao pecado. O pecado é uma gravitação».

Quando via o tumultuoso alarido e a precipitada indignação de muitos, dizia, sorrindo:

— Basta ver a azáfama com que a hipocrisia se apressa a protestar e a pôr-se a salvo, para se conhecer que o fogo também lhe andou por casa!

Indulgente para com as mulheres e para com os pobres, sobre quem recai sempre o anátema da sociedade, costumava dizer:

— As faltas das mulheres, das crianças, dos servos, dos fracos, dos indigentes e dos ignorantes, são as faltas dos maridos, dos pais, dos amos, dos fortes, dos ricos e dos sábios. 

E continuava:

— Aos ignorantes, ensinai-lhes o mais que puderdes; a sociedade é a única culpada por não ministrar a instrução gratuita e torna-se responsável pelas trevas que produz. O pecado comete-se no meio da escuridão que envolve as almas. O culpado não é o que peca, mas sim de quem produziu a sombra.

Como se vê, o prelado professava um singular e particular sistema de encarar as coisas, que desconfio tivesse aprendido no Evangelho.

Certa noite, numa reunião em que ele se encontrava, contou-se a história de um processo há pouco instaurado e que em breve ia entrar em julgamento. Levado pelo seu extremoso afeto a uma mulher que lhe dera um filho, certo desgraçado ao ver-se sem recursos, fabricou moeda falsa. Nessa época, o fabrico de moeda falsa era punido com pena de morte. A mulher fora presa na ocasião em que passava a primeira moeda fabricada por ele. Conservaram-na presa, mas não tendo provas contra ela, começaram a acusar o amante. Era ela a única pessoa que o podia perder, denunciando-o, mas não o fez, negando sempre. Nova insistência. A mesma negava. O procurador teve então uma ideia. Disse-lhe que o amante lhe era infiel, e por meio de alguns fragmentos de cartas astuciosamente forjadas, persuadiu a infeliz de que o seu cúmplice a atraiçoava. Então num acesso de ciúme, ela denunciara o amante e confessara tudo. O homem estava perdido. Contava-se a história do infeliz, o qual em breve ia ser julgado em Aix com a sua cúmplice. Todos louvavam a admirável sagacidade do magistrado, que, pondo em ação o ciúme, fizera do ódio irromper a verdade e da vingança a justiça. O bispo escutara a narração em silêncio e depois de terminada, perguntou:

— Por quem vão ser julgados esse homem e essa mulher?

— Pelo tribunal.

— E quem julgará o procurador?

Um dia, deu-se em Digne um trágico acontecimento. Um homem foi condenado à morte por crime de homicídio. Era um desgraçado não inteiramente destituído de instrução e que antes de ser preso exercia o duplo mister de saltimbanco e escritor público. O seu processo prendeu a atenção de toda a cidade. Na véspera do dia fixado para a execução do criminoso, o capelão da cadeia adoeceu repentinamente. Era preciso um sacerdote que assistisse ao paciente nos seus últimos momentos, e recorreu-se ao pároco, o qual se recusou, dizendo:

— Isso não é comigo, nada tenho que fazer com condenados, não é esse o meu lugar... e de resto também estou doente.

Depois de lhe contarem a resposta do pároco, o bispo respondeu:

— O pároco tem razão, não é ele que compete ir, mas sim eu.

E, dizendo isto, dirigiu-se imediatamente à cadeia, entrou na cela do saltimbanco, chamou-o pelo nome, estendeu-lhe a mão e conversou com ele, passou o dia a seu lado, sem se lembrar de comer nem de dormir, orando a Deus pela alma do condenado e pedindo a este que intercedesse pela dela. Disse-lhe as melhores verdades, que são as mais simples. Foi pai, irmão, amigo, bispo somente para o abençoar. Ensinou-lhe tudo, tranquilizando-o e consolando-o. Aquele homem ia morrer desesperado. A morte era para ele um abismo, a cujo limiar chegara forçado e à vista do qual recuava horrorizado e trémulo. Não era tão ignorante que se tornasse completamente indiferente, mas o violento abalo da sua condenação como que abrira algumas fendas, nesse véu chamado a vida, que nos separa do mistério das coisas. Até à chegada do bispo, por essas fatais aberturas, só via trevas; veio o bispo e apontou-lhe a claridade.

Quando, no dia seguinte, o vieram buscar para o conduzir ao cadafalso, o bispo, que não o tinha abandonado, acompanhou-o ao lugar do suplício, por entre os olhares da multidão, que o contemplava admirada, por vê-lo com o seu manto roxo e a cruz episcopal ao peito, ao lado do infeliz, com as mãos amarradas atrás das costas.

Tão prostrado e angustiado na véspera, o rosto do condenado mostrava-se agora iluminado por um resplandecente clarão de alegria. Reconciliado com a sua alma, entregava-se confiadamente a Deus. No momento em que o carrasco se preparava para descarregar o golpe fatal, o bispo abraçou-o pela última vez, dizendo-lhe:

— Meu filho, o que morre para satisfação da justiça dos homens, ressuscita em Deus; o que se vê repelido por seus irmãos, encontra abertos os braços do pai! Orai, crede, entrai na vida celeste, que Deus lá vos espera!

Quando desceu as escadas do cadafalso, o seu olhar fulgurava com uma estranha luz, que impunha respeito à multidão e a obrigava a dar-lhe passagem. Não sabemos qual das coisas era mais digna de admiração, se a sua palidez, se a sua serenidade. Ao entrar na sua modesta habitação, a que ele chamava, sorrindo, o seu palácio, disse à irmã:

— Acabei agora mesmo de celebrar pontificalmente.

Como quase sempre as coisas mais sublimes são também as menos compreendidas, não faltou na cidade quem, comentando o proceder do bispo, dissesse:

— Isso não passa de afetação !

Mas esta apreciação não saiu dos salões. O povo, pouco propenso a deitar malícia nas ações santas, admirava-o e mostrava-se comovido.

No que respeita ao bispo, a vista da guilhotina causou-lhe um abalo profundo, de que durante muito tempo não lhe foi possível restabelecer-se.

O aspecto do cadafalso, com efeito, quando se ergue tem qualquer coisa de alucinante. Pode mostrar-se indiferença em relação à pena de morte; podemos hesitar, não nos pronunciarmos claramente, enquanto com os nossos próprios olhos não vemos uma guilhotina, mas, desde que a vimos, o abalo que nos causa é tão violento que temos de nos decidir ou pró ou contra. Admiram-na uns como Maistre, outro detestam-na como Becaria. A guilhona é a expressão concentrada da lei; chama-se vingança, não é neutral nem nos permite sê-lo. Quem a vê sente percorrer-lhe no corpo o mais misterioso estremecimento. Em volta desse cutelo surgem todas as questões sociais como um ponto de interrogação. O cadafalso é uma visão, não é um madeiramento, uma máquina, um mecanismo inerte feito de pau, ferro e cordas. É uma espécie de ente dotado de não sei que sinistra iniciava. Dir-se-ia que essa mola de madeira vê, que essa máquina ouve, que esse mecanismo compreende, que esse ferro e essas cordas têm uma vontade. A vista de um cadafalso faz embrenhar o espírito em sombrias cogitações, do meio das quais surge terrível e como que circundado dos espectros das suas vimas. O cadafalso é o cúmplice do carrasco, nutre-se de carne e sangue humano. É uma espécie de monstro fabricado pelo juiz e pelo carpinteiro, um espectro que parece viver a horrorosa existência composta de todas as mortes que tem dado.

A impressão que semelhante vista causou no espírito do bispo foi tão profunda e horrível, que no dia seguinte e ainda daí por muitos dias, o bondoso prelado parecia visivelmente oprimido. A serenidade quase violenta do momento fúnebre havia desaparecido para dar lugar ao fantasma da justiça social que o perseguia e obcecava. Ele, que habitualmente voltava de todos os atos que ia desempenhar com tão radiante satisfação, agora quase parecia exprobar-se do que tinha feito. Às vezes punha-se a falar sozinho, balbuciando lúgubres monólogos. Eis um que a irmã, uma noite, ouviu e conservou de memória:

«Nunca supus que fosse uma coisa tão monstruosa! É um erro deixarmo-nos absorver pela lei divina, a ponto de olvidar inteiramente a lei humana. Matar só a Deus pertence! Com que direito tocam os homens nessa entidade desconhecida?»

Com o decorrer do tempo, estas impressões foram-se atenuando, até talvez se extinguirem. Todavia, houve quem notasse que o bispo, desde então, evitava passar pela praça onde tinham lugar as execuções. Podiam chamar o prelado a qualquer hora para ir confessar um enfermo ou assistir a um moribundo, que ele não ignorava ser este o seu dever mais sagrado, a sua missão mais sublime. As viúvas e os órfãos não precisavam de o chamar, porque ele lhes acudia voluntariamente. Sabia estar sentado durante horas inteiras a escutar silencioso e a animar com palavras de conforto o homem que perdera a mulher amada, ou a mãe que perdera o filho querido. Admirável consolador! Os seus esforços não tendiam a fazer extinguir a dor pelo esquecimento, mas a engrandecê-la pela esperança!

— Atentai bem no modo como contemplais os mortos — dizia ele. — Não ocupeis o vosso pensamento com o que apodrece. Olhai fixamente e vereis no fundo do céu a chama viva do ente morto a quem amáveis.

Ele sabia que a crença era santa e por isso aconselhava e serenava o homem desesperado, apontando-lhe o homem resignado, e transformava a dor imóvel diante de uma sepultura, indicando-lhe a dor que fita os olhos no cintilar de uma estrela.






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Enquanto existir nas leis e nos costumes uma organização social que cria infernos artificiais no seio da civilização, juntando ao destino, divino por natureza, um fatalismo que provém dos homens; enquanto não forem resolvidos os três problemas fundamentais a degradação do homem pela pobreza, o aviltamento da mulher pela fome, a atrofia da criança pelas trevas; enquanto, em certas classes, continuar a asfixia social ou, por outras palavras e sob um ponto de vista mais claro, enquanto houver no mundo ignorância e miséria, não serão de todo inúteis os livros desta natureza. 

Hauteville House, 1862




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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.


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