quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine II — O abade Myriel torna-se Monsenhor Bem-vindo

Victor Hugo - Os Miseráveis


Primeira Parte - Fantine

Livro Primeiro - Um Justo




II — O abade Myriel torna-se Monsenhor Bemvindo 

O paço episcopal de Digne estava situado junto do hospital, era um vasto edifício de pedra de cantaria, mandado construir no princípio do século passado por Monsenhor Henrique Puget, doutor em teologia pela faculdade de Paris, abade de Simore e bispo de Digne em 1712.

Este edifício era um verdadeiro domicílio senhorial, em que tudo respirava grandeza; os aposentos particulares do bispo, os salões, os quartos, o amplo pão de recreio com o seu claustro em volta, segundo a antiga moda florentina e as magníficas árvores do jardim.

Na sala de jantar, uma extensa e sumptuosa galeria no rés-do-chão, cujas janelas davam para os jardins, vera lugar o solene banquete oferecido pelo bispo Puget em 29 de Julho de 1714, ao arcebispo príncipe de Embrun, Carlos Brulaít de Genlis, António de Mesgrigny, capuchinho, bispo de Grasse, Filipe de Vendome, grão-prior de França, abade de Santo Honorato de Lérins, Francisco de Berton de Grillon, bispo-barão de Vence, César de Sabran de Forcalquier, bispo e senhor de Glandeve e a Jean Soanen, da congregação do oratório, pregador ordinário do rei e bispo e senhor de Senez.

A sala achava-se decorada com os retratos destes sete reverendos personagens e em cima de uma mesa de mármore branco via-se gravada em letras de oiro a memorável data de 29 de Julho de 1714.

O hospital era um pequeno edifício de um só andar, com um jardinzinho.

Três dias depois da sua chegada, o bispo foi visitar o hospital. Terminada a visita, pediu ao diretor que o acompanhasse ao paço.

— Senhor diretor — perguntou-lhe — quantos doentes tem a seu cargo?

— Vinte e seis, Monsenhor.

— Foi os que contei — disse o bispo.

— As camas estão muito apertadas e juntas.

— Também reparei nisso.

— As enfermarias são muito pequenas e têm falta de arejamento.

— Também me pareceu.

— E o jardim mal chega para os convalescentes passearem quando está bom tempo.

— Assim é, com efeito.

— Em ocasiões de epidemias, como este ano, em que houve muitos casos de tifo, não sabemos como acomodar os doentes.

— Também me ocorreu isso.

— Mas, senhor bispo, não podemos fazer outra coisa senão resignarmo-nos — concluiu o diretor.

Esta conversa desenrolava-se na sala de jantar ou galeria do andar térreo.

Após um momento de silêncio, o bispo voltou-se de repente para o diretor e perguntou-lhe:

— Quantas camas lhe parece que poderão caber nesta sala?

— Na sala de jantar de V. Ex.ª?! — exclamou o diretor, estupefato.

Entretanto, o bispo correu a vista pela sala, como quem mede e calcula as distâncias e disse como que falando consigo próprio:

— Podem aqui caber vinte camas à vontade! — E em seguida acrescentou, elevando a voz: — Senhor diretor, é evidente que há aqui um grande erro. O senhor tem vinte e seis pessoas em cinco ou seis quartos pequenos. Nós aqui somos três e temos lugar para sessenta. Repito que há erro! O senhor ocupa a minha casa e eu vou ocupar a sua. Façamos, pois, a troca.

No dia seguinte, os vinte e seis pobres que naquela ocasião estavam doentes, eram transportados para o paço episcopal e o bispo mudava a sua residência para o hospital.

Myriel não possuía bens de fortuna, pois a revolução arruinara completamente a sua família. A irmã ganha uma pensão vitalícia de quinhentos francos, a qual, enquanto Myriel fora pároco, bastava às suas despesas pessoais, e ele, como bispo, recebia do Estado uma dotação de quinze mil francos. No mesmo dia em que fixou a sua residência na casa que era dantes o hospital, determinou duma vez para sempre o emprego desta quantia, escrito pelo seu próprio punho da seguinte maneira:


Distribuição das despesas da minha casa:
Para o seminário: 1500 francos
Congregação da missão: 100 francos
Para os lazaristas de Montdidier: 100 francos
Seminário das missões estrangeiras em Paris: 200 francos
Congregação do Espírito Santo: 150 francos
Estabelecimentos religiosos da Terra Santa: 100 francos
Sociedades de caridade maternal: 300 francos
Para a de Aries: 50 francos
Para melhoramentos das prisões: 400 francos
Para socorro e livramento de presos: 500 francos
Para livramento de pais de famílias presos por dívidas: 1000 francos
Gratificações aos mestres pobres da diocese: 2000 francos
Para socorro dos pobres dos Altos-Alpes: 100 francos
Congregação das irmãs de Digne, de Manosque e de Sisteron, para o ensino gratuito das raparigas indigentes: 1500 francos
Para os pobres: 6000 francos
Para a minha despesa pessoal: 1000 francos
Total: 15000 francos


Durante todo o tempo do seu episcopado, o virtuoso prelado não fez a menor alteração nestas disposições, a que ele, como se viu, dava o nome de distribuição das despesas da minha casa.

Baptistina aceitou com a mais completa submissão a vontade do irmão. Para a virtuosa senhora, Myriel era não só seu irmão, mas seu bispo, seu amigo segundo a natureza, seu superior segundo a igreja. Amava-o e venerava-o inteira e simplesmente. Obedecia, quando ele ordenava e aderia às suas menores vontades sem fazer a mais leve observação. A criada Magloire é que não se conformou inteiramente com semelhante distribuição, por ver que o bispo só reservava para si mil francos, os quais, reunidos à pensão de Baptistina, perfaziam a soma de mil e quinhentos francos anuais, único rendimento com que os três tinham de viver.

E não só viviam, com efeito, como até quando algum pároco de aldeia vinha à cidade, o bispo ainda achava modo de hospedá-lo, graças à severa economia de Magloire e à inteligente administração de Baptistina.

Uma ocasião, três meses decorridos, depois da sua chegada a Digne, o bispo disse:

— Apesar de tudo, sabe Deus como eu vivo constrangido!

— Isso vejo eu! — exclamou Magloire. — Se Monsenhor nem ao menos requisitou à Câmara o subsídio que foi sempre costume dar aos bispos, para despesas na cidade e gastos de jornadas nas visitas do bispado!

— Parece-me que tem razão, Magloire — disse o bispo.

E fez a reclamação.

Passado algum tempo, a Câmara, tomando em consideração o seu requerimento, votava-lhe a quantia anual de três mil francos, sob a seguinte rubrica: Subsídio ao senhor bispo para prover às despesas de estado e às das visitas pastorais.

Não foi preciso mais para excitar as conversas da burguesia local, e para que, por essa ocasião, um senador do império, antigo membro do Conselho dos Quinhentos, partidário do dezoito brumário e provido numa pingue senatoria nas proximidades da cidade de Digne, escrevesse ao ministro dos cultos, Bigot de Préameneu, uma carta confidencial em termos irritados, da qual extraímos as seguintes linhas, cuja autenticidade garantimos:

Carruagem para quê? Quererá andar de carruagem numa cidade que não chega a ter quatro mil habitantes? Despesas com a visita ao bispado? Em primeiro lugar, de que servem tais visitas? Em segundo lugar, como quer ele andar de carruagem numa terra montanhosa como esta, onde nem estradas há e só a cavalo se pode transitar? Se nem sequer a ponte de Duranc em Château-Arnoux, dá passagem a não ser a algum carro de bois? Os padres são todos assim, ávidos e avaros! Este, quando chegou aqui, apresentou-se como bom apóstolo; agora mostra-se como todos os outros, já precisa de carruagem, não dispensa o luxo dos bispos. Súcia de padrecas! Asseguro-lhe, senhor conde, que enquanto o imperador não nos livrar desta praga de carolas, as coisas não tomarão bom rumo. Abaixo o Papa! (Nesta época as relações com a Santa Sé andavam complicadas). Eu sou por César e só por César! etc, etc.

A concessão que tanto incomodou o senador, encheu de júbilo Magloire.

— Ora graças a Deus! — disse ela a Bapsna. — O senhor bispo começou a caridade pelos outros, mas lembrou-se, enfim, também de si. Agora já temos três mil francos.

Nesse mesmo dia, o bispo entregou a sua irmã uma nota concebida do seguinte modo:


Despesas para carruagem e visitas ao bispado:
Para dar caldo de carne aos doentes do hospital: 1500 francos
Para a Sociedade de Caridade Maternal de Aix: 250 francos
Para a Sociedade de Caridade Maternal de Draguignan: 250 francos
Para os enjeitados: 500 francos
Para os órfãos: 500 francos
Total: 3000 francos


Tal era o orçamento do bispo Myriel. Quanto aos rendimentos eventuais, como dispensas de proclamas, bênçãos de igrejas ou capelas, casamentos, dispensas de vários géneros, tão grande era o vigor com que o bispo o exigia dos ricos, como a facilidade com que o dava aos pobres.

Passado algum tempo, começaram a afluir as ofertas de dinheiro. Os que ganham e os que não ganham todos batam à porta da residência episcopal, uns para dar, outros para receber a esmola que os primeiros iam depositar nas mãos do virtuoso prelado. Em menos de um ano tornou-se o tesoureiro de todos os benefícios e o provedor de toda a miséria. Avultadas quantias lhe passavam pelas mãos, mas nem por isso fez a menor alteração no seu modo de viver, acrescentando ao que lhe era indispensável a mais insignificante superfluidade. Pelo contrário, como há sempre mais miséria nas camadas inferiores do que fraternidade entre as superiores, o bispo dava tudo, por assim dizer, antes de o ter recebido. O dinheiro na sua mão era como água em terra sequiosa, por mais que recebesse achava-se sempre sem dinheiro. Nestas circunstâncias despojava-se até do que lhe era indispensável.

Guiados por uma espécie de afetuoso instinto, entre os nomes e apelidos do bispo, que, como é hábito, exarava no princípio das suas pastorais e circulares, os pobres da terra escolheram aquele que lhes oferecia um sendo. Assim, pois, todos o designavam por Monsenhor Bem-vindo, o que muito lhe agradava e que nós igualmente adoptamos.

— Gosto deste nome — dizia ele. — Bem-vindo modifica o tratamento de Monsenhor.

Não é nossa pretensão dar como exato o retrato que aqui traçamos; o que sabemos e nos limitamos a dizer é que ele é verdadeiro.




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Enquanto existir nas leis e nos costumes uma organização social que cria infernos artificiais no seio da civilização, juntando ao destino, divino por natureza, um fatalismo que provém dos homens; enquanto não forem resolvidos os três problemas fundamentais a degradação do homem pela pobreza, o aviltamento da mulher pela fome, a atrofia da criança pelas trevas; enquanto, em certas classes, continuar a asfixia social ou, por outras palavras e sob um ponto de vista mais claro, enquanto houver no mundo ignorância e miséria, não serão de todo inúteis os livros desta natureza. 

Hauteville House, 1862




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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.


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