domingo, 29 de abril de 2018

O Brasil Nação - v1: § 48 – O crime contra o Paraguai... – Manoel Bomfim

Manoel Bomfim



O Brasil nação volume 1





PRIMEIRA PARTE
SEQUÊNCIAS HISTÓRICAS



capítulo 5
o acervo do império




§ 48 – O crime contra o Paraguai...



Sendo a nação mais pacífica da América


Toda essa história, lóbrega, coxeante, desinteressante, só é lembrada porque nos dá o espelho mesmo da estúpida, derreada e sinistra política imperial no Prata, As antigas colônias de Castela traziam a trágica herança das facções caudilhescas, e o Brasil, explorando ignominiosamente essa triste condição, foi uma terrível agravante nas lutas internas do Prata, sobretudo no Uruguai, por intermédio dos colorados. Já vimos que era dos blancos a maioria da opinião nacional; mas, unidos os seus adversários com o governo imperial, não podia haver paz interna. Por si mesma, a nação uruguaia elegia um representante do partido guerreado pelo Brasil, e não tardava que Flores, assistido, já agora, por argentinos e brasileiros (governo), viesse dar com o presidente eleito por terra. Foi assim até 1863, quando o governo imperial entendeu abater definitivamente os blancos. O momento pareceu propício, pois que dominavam, agora, na Argentina, os mitristas, antigos aliados do governo de São Cristóvão, na guerra contra Rosas. Governava em Montevidéu Aguirre, blanco, que sucedera normalmente a Gabriel Pereira, e era tido como adversário, não só pelo governo imperial, como pelos mitristas, que haviam combatido contra os blancos de Oribe. Sem gente e sem dinheiro, lá estava em Buenos Aires Venâncio Flores, tão desprevenido para o caso, quando o atiraram a perturbar a paz de sua terra, que só encontrou para a aventura – quatro soldados. Nesse mesmo tempo, em grande aparato, é mandado ao Uruguai, o já respeitável liberal Saraiva, incumbido pelo governo imperial de pedir contas das antiquíssimas reclamações (1842-45) dos estancieiros ex-brasileiros, partidários dos colorados. Era, pois, uma alegação caduca, mas não havia outro motivo utilizável, e o grande liberal lá vai com ela e um ultimato formal, tendo às ordens, para demonstrar as razões do Império, uma esquadra sob os bordados de Tamandaré, e um exército com Mena Barreto, Osório e o que havia de mais aguerrido nas cochilhas rio-grandenses. Paissandu, Montevidéu... são os passos dessa campanha. Saraiva, Paranhos, Otaviano Rosa... foram as habilidades diplomáticas para a obra, em que, finalmente, abateram os blancos. Nominalmente vencera-os Flores, que entrou em campanha, com os seus quatro soldados, logo depois de entregue o ultimato de Saraiva; e venceu prontamente, porque o governo imperial já não sentia necessidade de mascarar a sua política. E foi nesse momento impropício, que Solano Lopez ousou encarar o imperial poder, e o afrontou, oferecendo-se como medianeiro, entre o Brasil e o governo legal do Uruguai. Nada mais justo e mais legítimo, em face de todos os direitos; mas o imperial poder não pôde suportar tal atitude, e decidiu castigar inexoravelmente quem parecia querer pedir-lhe contas da sua política platina.

Para alcançar toda a extensão do crime contra o Paraguai é indispensável buscar a história dessa República, desde os seus primeiros dias, porque é a história de uma constante aproximação do Brasil, através de confessada amizade, e que foi até a aliança.

Dadas as suas condições de formação – jesuítas, missões, e com o radicado facciosismo dos platinos, e as suas tendências particularistas, o Paraguai decidiu, desde logo (1812), ficar independente da República Argentina. Governava-o, já, o ditador Francia, de origem brasileira, e que, em vista das pretensões dos platinos, isolou-se completamente deles, isolando-se, quase, do mundo, visto que o Prata é a saída possível para os paraguaios. E foi assim que o Dr. Francia se aproximou diplomaticamente do Brasil. Era como uma aliança implícita: militares brasileiros iam instruir as tropas do supremo senhor do Paraguai, traçar as fortalezas, até que, com o sucessor de Francia, foi uma aliança explícita, se bem que de caráter defensivo. O governo do Brasil aceitou jubiloso a amizade do Paraguai, e correspondeu a ela, prestando os já assinalados serviços; o Paraguai valia com uma fortaleza no flanco da Argentina, com quem o governo imperial teve de lutar. Nestas condições, a amizade de toda uma vida, continuou mesmo depois de desaparecido Francia. Mas aconteceu que Lopez não tinha sangue brasileiro, e o Paraguai de 1860 era próspero, organizado rigidamente, bem disciplinado, fora das agitações do caudilhismo, uma potência. Foi justamente quando o governo imperial, já desembaraçado de Rosas, e confiante nos mitristas, entendeu ser senhor ostensivo nas águas do Paraguai, ao ponto de querer do governo de Lopez (o velho) aquilo mesmo que, no Amazonas, ele negava aos ribeirinhos superiores. Sem mais hesitações, o governo do Rio de Janeiro fez aplicar ao Paraguai os processos correntes, de intrigas políticas usados por ele nos outros países platinos, e Lopez teve de dar os passaportes ao ministro brasileiro, censurando-o em nota oficial de fazer intrigas contra o seu governo. Nesse tempo, já o imperialismo brasileiro fazia questão de obter a livre navegação no baixo Paraguai. Dado o caso dos passaportes, foi mandado a Assunção o plenipotenciário Ferreira, comandando uma esquadra, a pedir satisfação da ofensa. Lopez não consentiu que subisse a esquadra, concedendo que prosseguisse, apenas, um navio com Pedro Ferreira. Mas esse mesmo navio encalhou, perto de Assunção, e Lopes permitiu que subissem outros afim de safar o primeiro. O plenipotenciário obteve a satisfação que fora buscar, lavrando-se as competentes convenções. E com isto se verificou que o intuito da embaixada militar de Ferreira, intuito não indicado, era bem mais longo e importante: o governo imperial não ratificou as tais convenções, sob a alegação franca de que tinham sido conchavadas antes de concedida a navegação exigida pelo Brasil. No entanto, Lopez demonstrou desejo de conciliação, e logo depois, em 1856, mandou ao Rio um seu ministro de Estado, Berges, para realizar um acordo. Paranhos obteve de Berges tudo o que queria, mas, por sua vez, Lopez rejeitou o tratado do plenipotenciário, se bem que logo depois mandasse o próprio filho (em 1858), o infeliz Solano Lopez, concedendo a livre navegação, como o queria o Brasil.

Com isso, teve o Paraguai justos motivos de desconfiar do imperialismo de Pedro II. De fato, o governo de São Cristóvão, liquidado Rosas, arrancou todas as máscaras; mostrou que a amizade ao Paraguai não valia mais do que o comum das amizades diplomáticas, e pesou sobre a política da Banda Oriental como nos dias da Cisplatina. Enquanto isto, o Paraguai chegara ao ponto de ser a mais poderosa das repúblicas platinas; sentia-se forte e digno de ocupar o seu lugar na política internacional da América do Sul, e jogou um golpe para esclarecer a situação e afirmar a sua soberania... Quem podia garantir que não se faria o acordo – Uruguai para o Brasil, Paraguai para a Argentina?... O tratado de 2 de janeiro de 1859 não chegava a ser um obstáculo. Dados os resultados, verifica-se que Solano Lopez agiu precipitadamente: não deixou, atrás da sua pretensão, a saída que lhe permitisse conservar a paz. É que, fraco diplomata, não supôs o facciosismo imperial capaz de já ter disposto da soberania de uma nação nominalmente independente. Não foi perspicaz, Lopez, mas patenteou intuitos muito patrióticos e americanos. Se o governo imperial estivesse ali de boa-fé, e tivesse aceitado a sua mediação, sendo, no acordo com o governo dos mitristas, a parte mais forte, teria realizado, certamente, uma política muito conveniente aos interesses brasileiros no que eles tivessem de justo, e o Paraguai lograria sair do ingrato isolamento em que se achava. Assim prestigiado, viria a ser, bem acentuadamente, um fator de equilíbrio naquele sul do continente, e, por mais que a Argentina se desenvolvesse, jamais seria uma ameaça real para a Nação brasileira. Perante a justiça absoluta, o Brasil não devia intrometer-se na política interna das nações vizinhas; perante o tortuoso e insuficiente direito das gentes, ele não podia rejeitar a mediação amistosa do Paraguai, de quem era aliado. Por tudo isto, manifestada a resolução imperial de impor-se discricionariamente a uma nação vizinha e dada a acintosa repulsa da mediação, só restava ao Paraguai considerar-se inimigo, precavendo-se, ao mesmo tempo, contra o faccioso imperialismo do Brasil. E assim teve Lopez de agir. A sua linguagem só teve o defeito de ser peremptória, quando a diplomacia prefere os subterfúgios: “A segurança da paz e a prosperidade do Paraguai ficarão ameaçadas se as tropas do Império entrarem no Estado Oriental... O Paraguai não pode consentir que se desdenhe de sua política; já é tempo que se ouça a voz da nossa pátria.” Foi a sua declaração de guerra.173  Mas, tão premeditada estava a política imperial no Uruguai, que a atitude peremptória de Lopez já se encontrou com o caso resolvido. A Argentina, ao mando dos


173 Alegou-se que Solano procedeu insidiosamente pois que começou as hostilidades sem prévia declaração de guerra... Mesmo na época, reconheceu Paranhos que o protesto do governo Paraguaio equivalia a uma declaração da guerra... Por sua vez, Schneider atesta: “Solano, só depois de muitas vacilações, resolveu dar começo às hostilidades”.


antirrosistas, aceita a missão de ajudar a aniquilar o povo irmão, ou, pelo menos, não teve a audácia justa de a isto se negar, e celebra a covardíssima tríplice aliança, em que o Uruguai é, apenas, na subalternidade de Flores, o caudatário da política imperial. Destarte, três quartos do continente, em extensão, riqueza e população, marcham contra o acanhado Paraguai... Ainda assim, tanto pesa o crime, que levam cinco anos para realizar uma vitória de antemão garantida.
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174 Militarmente a célebre tríplice aliança foram – 36.000 soldados brasileiros, 3.000 argentinos e 1. 000 uruguaios, e, finalmente, custou ao Brasil 100.000 vidas e 600.000 contos, de que ficou, apenas, a compensação do que a Argentina arrancou para si ao desgraçado Paraguai – Jourdan, 12. VIII.



Alegaram, os que pretendiam justificar o crime, que os Lopez eram inimigos do Brasil... Não há, em toda a história, uma só verdade em favor dessa afirmação. Nem o pai, nem o filho, jamais procederam de modo, ou praticaram qualquer ato que se pudesse qualificar de hostilidade ao Brasil, como nunca intervieram, antes, nas questões que o governo imperial discutia despoticamente com os outros platinos. Mudaram de sentimento para com o Brasil, e no final, tornaram-se suspeitosos. Nada mais natural: homens inteligentes, patriotas, puros castelhanos, sem os motivos pessoais de Francia (brasileiro de origem), eles encontraram o seu país enfeudado à política platina do governo imperial; ora, foi quando este, por se sentir vitorioso sobre o resto do Prata, começou a série de exigências – navegação, limites... que se estenderam por seis anos. Dissipou-se, naturalmente, a confiança do Paraguai, ao mesmo tempo que a sua prosperidade e força eram patentes. Quando o governo de São Cristóvão apelou para o tratado de aliança, a fim de que Lopez viesse fazer guerra contra Rosas, ele teve a medida da má-fé imperial, e respondeu, com toda a razão e justiça; não é uma guerra de defesa; não marcho... Pelo seu lado, São Cristóvão compreendeu que não podia contar com o Paraguai para o seu imperialismo torvo, de funesta e ridícula hegemonia. Agora, continuando o governo imperial na sua política de intervenção acintosa nos negócios do Prata, a guerra com o Paraguai era uma questão de tempo, apenas. Pouco diplomata, o ditador foi adiante dos planos imperiais. Então, os liberais de São Cristóvão começaram a ver em Lopez um tirano, déspota, tratando-o nos mesmos termos em que falaram e detrataram Rosas. Admitamos que os liberais chocados ao calor de São Cristóvão fossem sinceros; partir, o governo imperial do Rio de Janeiro, em campanha contra os ditadores de Buenos Aires e de Assunção é prova bastante do seu facciosismo.

Mas, todos o sentiam e o sabiam: a meditada agressão contra os governos daquelas Repúblicas provinha de outros motivos, e ninguém dava fé à insinceridade das alegações. Só uma boa-fé que já fosse estultice, poderia admitir que o Império bragantino-brasileiro fosse combater Rosas, Oribe, ou Lopez – por amor à liberdade... O Estado que, com toda desfaçatez, tirava riqueza da condenada escravidão, e protegera, enquanto pudera, o hediondo negreirismo Português – e há um país que a bandeira empresta para cobrir tanta infâmia e covardia!... O Estado que proíbe a entrada da Cabana do Pai Tomás; o Estado onde, mesmo depois de aniquilado o Paraguai, foi preciso um longo discutir – para que se concedesse a minguada e assassina libertação dos nascituros, e que teve legisladores para estender a escravidão para o século XX, pois que tal aconteceria se a nação, revolucionária, não houvesse repelido as leis de 28 de setembro e a de Saraiva-Cotegipe; um tal Estado, apresentar-se como paladino da liberdade, chega a ser irrisão. E é preciso não esquecer que um dos motivos decisos, no ânimo imperial para atender à questão da escravidão, foi a cerrada propaganda que o governo paraguaio fez contra o Brasil, contradizendo as pretensões liberais do seu governo, apresentando-o ao mundo, qual ele era: um Estado que explora o cativeiro, e não tinha pensamento oficial, no sentido de redimir-se disto.

O governo imperial pavoneou de defensor da liberdade, mas a verdade é que, dada a miserável tríplice aliança conduzida pelo Brasil, e feita em segredo, só revelada por uma leviandade do ministro uruguaio, todo o resto da América, todo o mundo deu as suas cordiais simpatias ao Paraguai. Dir-se-á: mas o Brasil nenhum lucro tirou de tal guerra (mas tirou a Argentina), por que, então, a fez o governo imperial? E, então, por que acusá-lo? Como culpar o Brasil, se, ao termo, ele não despojou o vencido, nem o submeteu? Não se peça, nunca, explicação de atos insensatos; a estupidez, por si só, é a única explicação possível. Tal se dá no caso. O bragantismo se caracterizou, sempre, por uma sinistra estupidez. Senhor de si, como nos dias do Império, ele virá, fatalmente, a esses resultados. Na essência dos seus sentimentos, o Brasil nunca molestaria nações platinas, ou qualquer nação da América, ou do mundo. Os efeitos da ação brasileira no Sul são manifestações exclusivas da política pessoal dos Braganças.175  Concretamente, não foi um motivo só que determinou a criminosa guerra contra o Paraguai, mas um feixe de motivos, qual mais estúpido, qualquer deles insuficiente por si só, mesmo em critério de estupidez, mas poderosíssimos quando somados: consequências imediatas da política donde nasceu a Cisplatina; prevenções malévolas, de um governo imperial contra nações vizinhas que se chamam de repúblicas, e que, certamente, viriam a ser democracias, desde que se curassem do facciosismo inicial; empenho de, por isso mesmo, fomentar o facciosismo; empenho em mostrar que, por serem repúblicas, eram aquelas nações organismos políticos agitados, instáveis, incompatíveis com o progresso; estúpida pretensão de


175 Os Estados Unidos e o Peru protestaram contra a guerra ao Paraguai, afirma-o o Cons. Tito (Franco de Sá, 473.) Austricliano conta-nos que além dessas duas nações, a Bolívia e o Chile ofereceram a meditação para dar fim à campanha iníqua, oferecimento que o capricho imperial rejeitou, como repeliu a paz que o Lopez solicitou, e foi considerada justa e boa por muitos dos ministros da época, (Austricliano, 829).



impor a hegemonia do Brasil, no continente, não por engrandecimento próprio, mas abatendo os vizinhos, desnivelando-os; finalmente, o intuito de criar, com guerras externas, um derivativo às ânsias da nação, repetidamente burlada nos seus esforços para a realização da democracia. A erupção de 1848, (quando 42 parecia o fim das impaciências políticas), foi um aviso, e o mesmo Tosta, finda a empreitada contra os praieiros, é mandado para fomentar a guerra na Banda Oriental. E o Império veio assim, de guerra em guerra, até o crime hediondo de 1865-70.

Por isso mesmo, deparamos com o estranho paradoxo: o país que teve patriotismo para os sacrifícios de longa campanha, até exterminar, quase, a nação inimiga, não obstante ser o seu povo jovem, exuberante, ansioso por afirmar esse mesmo patriotismo, não teve entusiasmos nenhuns pela sua grande guerra; nunca teve, mesmo, ódio formal pelo inimigo que lhe impuseram. Em verdade, a guerra do Paraguai nunca foi popular no Brasil, que a aceitou, bem explicitamente como penoso sacrifício, em satisfação do capricho imperial.176  A contraprova do fato, nós a temos no propositado mutismo dos nossos grandes poetas, contemporâneos daquela guerra, imediatamente posteriores a ela. Não que faltassem heroísmos e lances de grandeza de ânimo, nos muitos milhares de brasileiros que lá deixaram os ossos; mas é que o desenvolvimento dado aos mesmos heroísmos repugnava no coração brasileiro. Só poetas menores, ou contrafacção de poetas, esgotaram o esfalfado estro em cantar as façanhas de Humaitá e Riachuelo. No mais, a grande e legítima poesia, voz autêntica do sentimento brasileiro, essa nos fala nas estâncias de – Pedro Ivo,


176 No tempo, afirmava-se peremptoriamente: É o imperador quem quer a guerra (ao Lopez), Saldanha Marinho não tem reservas: “A fatal guerra da Cisplatina, nascida do capricho do rei, como, hoje, a que sustenta o Brasil contra o Paraguai... Foi o rei quem preparou, ele só, a guerra” (A Política do Rei, 16... 55). Felix da Cunha reforça a nota: “A guerra contra o Paraguai, guerra da monarquia, e, muito particularmente do imperador” (75).


Nunes Machado, Vozes d’África, A Um Monumento... Há mais emoção aí e beleza do que nas longas estopadas dedicadas àquela guerra. Apesar de todo o heroísmo, e dos ingentes sacrifícios, das ondas de brasileiros que destruíram o Paraguai, eles foram lembrados para serem lamentados, como perdas inglórias, porque ainda não bastaram para redimir o crime.177  Houve muito heroísmo pessoal, nos Argolo, Osório, Porto Alegre, Cabrita, Camerino, Fernandes Machado, Maciel Monteiro... sobretudo nos humildes soldados, de cujos sacrifícios nem o nome resta... São motivos de silenciosa confiança, quando haja ameaças de perigo; são motivos de sentida gratidão, em nome da coletividade; mas, em sincera admiração, o que assombra é a valentia de todo um povo, que luta até a extinção do último homem, e que prefere o aniquilamento a entregar os seus destinos ao adversário implacável na injustiça. E compreende-se, então, que uma festança adulatória, com pretexto de vitórias no Sul, seja a ocasião de, pela primeira vez, desacatar-se em público a pessoa do imperante (Austricliano, 605).


177 Há, sim, umas estrofes de Castro Alves – O Pesadelo de Humaitá... A história desta poesia e o valor dela completam a demonstração de que a alma brasileira não se exaltava com a guerra ao Paraguai. Em março de 1868, o glorioso poeta estava de passagem no Rio de Janeiro, onde foi recebido com um entusiasmo que já era a consagração do seu gênio. Achava-se, certo dia, na redação de um jornal, na Rua do Ouvidor; passa um batalhão patriótico a embarcar, pedem-lhe versos patrióticos, e ele recita as citadas estrofes, que do poeta só lembram os defeitos. Nem inspiração, nem arrojo, nem imagens, nem sentimento... Tudo não vale mais do que o dístico: [Se pisa o Prata – Riachuelo brilha.] [Se estende o braço – Uruguaiana – fez.] Não vai além de qualquer das estâncias de um famoso Riachuelo. Em compensação, o poeta da Deusa Incruenta, não se reconhecendo no mote pueril – O vil tirano há de beijar-lhes os pés... desde logo condenou a peça, com a nota, à margem – Não se publica... De fato, só em 1913, um impiedoso se lembrou de juntar O Pesadelo a um volume das poesias válidas de Castro Alves. Afrânio Peixoto, dando as Obras Completas do grande épico baiano, teve necessariamente de incluir as pesadas estrofes, de que o autor se arrependeu.


Fizemos a campanha numa tríplice aliança, e quanto mais se desenvolvia a iniquidade, mais se desuniam os aliados, mais a nação brasileira velava o seu entusiasmo. O povo, em si mesmo, tinha intuição do crime a que arrastavam o Brasil, e nunca teve ânimo para transformar em lendas as infâmias que lhe contavam do homem que defendeu o seu país até o último alento, e nunca admitiu render-se aos destruidores da sua pátria, Anos depois da catástrofe, Paranhos, mais sabido do que ninguém nos arcanos daquela nefasta diplomacia, virá dizer:



Estamos persuadidos, e isto se depreende de documentos do arquivo de Lopez, que ele não se armava para fazer a guerra ao Brasil. O projeto que alimentava era estender os seus domínios para o Sul, conquistando Corrientes; talvez, nem isto, mas somente ganhar fama militar e influência nos negócios do Rio da Prata. A nossa intervenção de 1864, no Estado Oriental, habilmente explorada pelos blancos, fez com que Lopez suspeitasse que pretendíamos fazer uma guerra de conquista. A repulsa da sua mediação o irritou, e a cordialidade que havia entre o governo imperial e o argentino, aumentou aquelas infundadas suspeitas. Consta-nos que o ministro uruguaio em Assunção, Sagastume, conseguiu convencer Lopez de que havia um tratado secreto de aliança, entre o Brasil e a República Argentina para a partilha do Paraguai e o Estado Oriental (Nota de Paranhos, à obra de Schneider, pág. 85).

E com a justificação de tais futilidades, abate-se uma nação americana, quando o governo imperial certamente sabia que o seu antigo alado não lhe queria fazer guerra!

Console-nos a ideia de que não foi preciso que Paranhos viesse mostrar a mentira essencial, para que a nação brasileira abrisse o seu coração às vítimas do Império bragantino. A campanha só acabou com a morte do ditador, implacavelmente atenazado, quando já não era poder, quando não mais podia ser o adversário de um Império... E, ao termo de tudo, é a imagem dessa morte que nos fica na sentida lembrança, como símbolo de toda a guerra: com o ventre rasgado por um laçaço inclemente, caído, já sem forças para levantar a sua espada intransigente, debruçado, sobre as vísceras derramadas, abraça-se com ela: querem arrancá-la, os dedos do moribundo tetanizam-se em segurá-la... e recebe um tiro nas costas... Quem assim o conta, refutando a narrativa enfeitada de Pelotas, é o guerreiro Joca Tavares, o próprio que comandava as forças a quem cabe a façanha. Depois, ninguém queria a glória de ter acabado com o Lopez; houve perlenga, desinteressante discussão, donde transuda, principalmente, o desgosto de brasileiros de quem se exigia chacina de extermínio (o termo é da parte oficial, de Pelotas). E tiveram de buscar um Chico Diabo, bastante humilde e desconhecido, para ser o herói definitivo. Na calma do inventário, o que se destaca da campanha são erros militares, o desbarato de dinheiro... proporcionais aos anos longos que ela dura: a escolha do generalíssimo, a expedição de Mato Grosso – 11.000 homens que se reduzem a 1.000, sem nenhum combate, a estratégia da Tríplice, e que vai, pelo desastre de Curupaiti, à inação de um ano, nos acampamentos de Tuiuti, poluídos de todas as epidemias, e a necessidade de arrastar os soldados brasileiros pelos charcos sinistros até Assunção, depois de Passo da Pátria... Que importa, tudo isto? Os milhões de brasileiros davam para encher todos os claros, até que o imperial capricho tivesse satisfação. E Caxias, o general das pacificações, teve de ser grande estrategista, e a ele se deve, talvez – que a guerra não fosse de dez anos. Note-se: os Paraguaios só tinham, por si, a abstrata justiça, e o valor inalterável da sua gente; no mais, a sua estratégia estava abaixo da dos aliados. E resistiram cinco anos, numa tenacidade heroica, que só não foi estúpida porque foi sublime. Era a indefectível necessidade de não ceder, para patentear o crime do ataque inexorável a um povo americano, que não dera nenhum motivo para qualquer ataque. Eis a razão por que um brasileiro nunca poderá reconhecer legítima bondade em Pedro II. Nunca! E patriotismo? Não pode haver patriotismo, em valor de virtude, fora da boa justiça e da bondade.


FIM DO TOMO I



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"Morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."

Cecília Costa Junqueira



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O Brasil nação: vol. I / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 332 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 35).


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