segunda-feira, 27 de novembro de 2017

O Brasil Nação - v1: § 43 – O moderador, pessoal e absoluto - Manoel Bomfim

Manoel Bomfim



O Brasil nação volume 1





PRIMEIRA PARTE
SEQUÊNCIAS HISTÓRICAS



capítulo 5
o acervo do império





§ 43 – O moderador, pessoal e absoluto




Teria sido gratuita a eiva de absoluto e pessoal, com que se marcou o reinado do último imperador? A unanimidade da acusação, a relativa ufania com que Pedro II a recebia, os fatos alegados, e os efeitos reconhecidos, demonstram cabalmente a realidade dela. Sim: desde que nunca se praticaram os princípios democráticos na organização dos poderes da nação; desde que, sem verdade de eleições, fazia-se, no entanto, todo o jogo parlamentarista, para toda a vida do Estado como se a vontade da nação se houvera pronunciado, é que uma vontade exterior à legalidade, e superior, no regime, veio suprir a democracia ausente. Tanto vale dizer: não teria havido a aparência de governo representativo se não fosse o poder pessoal do imperante. Efeito e necessidade da política normalizada no Brasil, desde 1824, o poder pessoal é contemporâneo dessa normalização, anterior, por conseguinte ao reinado de Pedro II. Todavia, na carência total do regime, dada a manifesta miséria da política, os governantes, desde que não estivessem no mando, voltavam-se para o decantado poder pessoal – a mostrar a realidade dele, e a dar-lhe a responsabilidade da mesma miséria política. A alegação não vale mais do que os mesmos políticos, mas tem o mérito de completar a prova da existência do poder pessoal. 

Falem, liberais e conservadores. 

Sousa Carvalho, por exemplo, não tem má vontade para com o imperador, e reconhece que o uso do poder pessoal foi, antes, um corretivo à miséria da política: “Se o imperador não revezasse os partidos na nomeação dos ministros de Estado, provavelmente seria eterna a dominação do partido que ele conservasse no poder... Não sei em que se fundam os que atribuem à coroa o estado degradante da nossa política...” Mas, com isto, atesta a existência da vontade do trono no curso da política:


No Brasil, o partido que está de cima sustenta o absolutismo pela fácil dominação que lhe proporciona... O governo exercita verdadeiro absolutismo... a invencível onipotência, o despotismo ignóbil sob o qual vegetamos... o vergonhoso absolutismo do governo, a nação dividida em dois partidos pessoais... Ditoso país... em que o governo absoluto pode ser requestado e servido à competência por liberais e conservadores!... o nosso liberalismo pessoal... tão estupendo e ridículo, que assombraria a consciência do gênero humano e faria o mundo inteiro dar gargalhadas.
 

Ao mesmo tempo, Sousa Carvalho atesta que: “... com todos os partidos, o governo é tudo, e em vez da câmara fazer o ministério, é este que faz a câmara... as urnas eleitorais nunca retirariam um partido do poder.”165  Reconhece que tal não é devido somente à tendência exorbitante do imperador; mas, bacharel, em face de costumes políticos, ele pretende que tudo resulta da simples forma legal – leis más. Ora, todos sabemos que leis não criam costumes, antes derivam deles. E esse foi o nosso caso: um parlamentarismo por fora da constituição, degradação da política, abjurações e transigências, produzindo a infame legislação reatora de 1839-49... Para a prova definitiva de que a forma legal não garante pureza na prática, nem liberdade de regime, aí temos a célebre e libérrima constituição republicana cobrindo práticas mais antiliberais e mais desbragadas que as do Império. Aliás, Sousa Carvalho mesmo não está bem certo da causa, e, finalmente, só faz questão da realidade verificada:


Sejam quais forem as verdadeiras causas, é certo que vivemos sob o mais perfeito absolutismo. Este estado é intolerável, faz vergonha de ser brasileiro. A voz popular costuma atribuir ao chefe supremo os erros e males da comunidade. O absolutismo do governo vai disputando com a duração do reinado... Se os ministérios têm interesse passageiro em manter o absolutismo, a coroa tem interesse permanente em sustentá-lo...


165 Op. cit., págs. 6, 29, 47, 48, 50, 53, 66, 72. 


O conservador José de Alencar é mais formal contra o poder pessoal, porque se sente vítima dele. Começa apontando –


a ostentação de absolutismo, pois que só nos governos absolutos é que o impulso de vida pública vem do alto... Há um luxo, um aparato, uma ostentação de absolutismo que abate o cidadão brasileiro. Neste país, não é a opinião que domina, mas a vitaliciedade. A coroa... eis a imagem da monarquia constitucional do Brasil... O país está absolutamente cativo do absolutismo e da preponderância do governo pessoal... O ministério reduzido a um corpo movido pela cabeça aparente, com a coroa como cérebro... O organizador do ministério não é quem de fato o organiza, mas um poder superior... o dono desta terra... o único poder deste Império, aquele que o estrangeiro chama – o dono esta terra...


Para que não pareça vazia a acusação, o grande cearense volta-se para o governo da véspera, o de Pimenta Bueno (São Vicente), político sem outro prestígio além do favor imperial:


... nulidade que cerca o trono... Homens sem escrúpulos, baldos de pensamento, decorados com as rubricas de quaisquer opiniões em voga, e assim escalam o poder, e nele se mantém. É esse um dos meios que o poder pessoal frequentemente emprega... não se carece mudar de gabinete para mudar de programa... Tem o poder pessoal para seu uso uma provisão de paradoxos. Possuído intus et in cute do espírito do governo pessoal, o Sr. Visconde de São Vicente organizou a instituição da presidência do Conselho pelo molde imperial...


Artista, Alencar dá pitoresco às formas do poder pessoal:


São Vicente – órgão parlamentar da coroa, iniciador dos projetos organizáveis à majestade... São Vicente encarnação do governo pessoal. Antes, os ministérios serviam de instrumento à vontade superior; neste, o poder irresponsável se infundiu e incorporou... Que melhor ambrosia se pode oferecer a Júpiter do que a queda de um homem superior?... Os políticos são utensílios do governo pessoal...

Num certo momento, afirmou Sousa Carvalho: “O absolutismo do governo vai disputando com a duração deste reinado...” para fazer crer que, de início, não era assim. No entanto, subimos pelo tempo, e encontramos a constante verificação de – absolutismo em manifestação pessoal. Melo Morais: “A nação votada inconstitucionalmente à inexperiência, ao pedantismo e aos desatinos do poder executivo, o único poder da nação...” Ora, bem sabemos que o executivo consubstanciara-se num ministério, instrumento da coroa. Para Tavares Bastos, a existência do poder pessoal nem merece discussão: “... Os políticos volvem e revolvem a eterna questão do governo pessoal... brinquedo, distração aconselhada pelo governo, para poder, às caladas, arranjar os seus projetos inconstitucionais e vergonhosos...” Compreensão e crítica muito justas: o poder pessoal, realidade que era, não só aproveitava aos políticos como distribuição de domínio, como lhes dava a desculpa – dos constantes atentados à liberdade e da insuficiência do governo para o bem. Landulfo Medrado, mais para trás, 1860, clama por um lado: “Declara-se tudo corrompido, exceto o poder neutro (a coroa); insinua-se a necessidade e excelência do governo pessoal...” ao passo que, por outro lado, nota: “As acusações passavam por cima da cabeça dos ministros e iam ferir o poder inviolável... fazia-se sentir de mais a vontade irresponsável...” E pergunta: “... têm a simplicidade de duvidar que de fato existe o governo pessoal?.. Estão satisfeitos com os frutos que o país há recolhido do governo pessoal?...” De todo modo, o grande liberal baiano fala como de coisa incontestável, esse poder pessoal, que até aparecia a muitos – qual remédio contra a corrupção geral. 

Havia mesmo uma formal propaganda – para sua ostensiva legalização:


... perdidas todas as reputações, estragado todo prestígio pessoal: sopravam ambições, invejas, ódio, irritações, vinganças, misérias... contavam que a solução do problema seria... a que parecia mais simples, fácil e, talvez, natural e necessária: só um indivíduo, só um poder escapara a essa vasta e funda desmoralização; a nação, portanto, descrida dos outros seus delegados, descrida de si mesma, abdicaria a sua soberania nas mãos do único que se não maculara...


Uma tal propaganda indica o termo de uma evolução: o poder pessoal, de tão patente sobre a nação abandonada, tratava de legalizar-se: era o tipo bem definitivo e consagrado, por isso mesmo que a respectiva evolução começara numa forma por demais adiantada. A primeira referência à exorbitação da coroa já patenteia uma completa deformação do regime para os liberais de 1842. O·absolutismo do poder supremo só se explicava como coação – dos conservadores, feitos com a camarilha, sobre o ânimo do imperial adolescente. Os resultados da luta travada por eles para livrar o trono, demonstrou que – coros e camarilha fundiam-se numa só expressão. Depois, porque, em 1846, são os conservadores os feridos pelo poder pessoal, em toda a força, desandam, os mesmos conservadores, em acusações formais, como se lê no célebre panfleto de Justiniano Rocha, ou Vasconcelos, ou Hermeto. E nunca mais cessam tais acusações, até a Grande Aranha, de Rui Barbosa, reinando na excelsa corte de El-Rei café... Um Itaboraí, antes justifica, do que acusa: “O imperador reina, governa e administra.” Como bom escravocrata, Rodrigues Torres reservava para si o papel de feitor, do supremo mandão. Euzébio de Queiroz, esse que só foi ministro uma vez, tanto lhe doeu o freio do governo pessoal, dizia: “Nesta terra não se pode ser ministro...” Noutros termos: “Com o imperador, não é possível a um homem, dono de si, ser ministro.” Pelo mesmo tempo, o jornal de Francisco Otaviano abria as cortinas: “O movimento (político) parte de cima; quem governa é a coroa.” E Silveira Lobo completava o julgamento: “Hoje só os servis e os néscios desconhecem a existência do poder pessoal...” 

Finalmente, nem havia quem quisesse, ou pudesse passar por néscio – com o negar a realidade da onipotência política de Pedro II. Desde que um partido estava na oposição fustigava as imperiais faces com a acusação. Mas só o fazia por matreirice, para forçar a vez na distribuição do poder. No mais, de um lado e do outro, todos aceitavam a condição subalterna em que os deixava o trono; ninguém resistia à ostensiva usurpação de poderes, por parte do monarca, porque ninguém se podia dizer legítimo representante da nação: “No Brasil não há eleições... O governo é que faz a câmara, em vez de ser feito por ela...” Em tais condições, como poderiam esses espúrios representantes da nação ter segurança de atitudes e independência de caráter para enfrentar o trono absorvente? Eram todos utensílios do governo pessoal; disse José de Alencar, que, aliás, também o foi. Bem considerado, teria sido Pedro II o menos responsável pela inflação ilegal dos seus poderes majestáticos; criança, foram buscá-lo, tumultuariamente – para que a sua pessoinha mudasse a situação política, contra a vontade expressa da nação, representada na câmara dos deputados; antes, já Araújo Lima havia afastado um ministério, por um verdadeiro golpe de governo pessoal; depois, de 1841 em diante, não houve chefe político que não aceitasse o poder – que lhe fosse dado por simples arbítrio do governo pessoal, e, assim como aproveitavam o poder, reclamavam a dissolução da câmara. Ora, quem concordava com o mais, que era esse fácil jogo de parlamentarismo, concordava com o menos: que o imperador interviesse em todos os negócios da Nação, para impor as suas decisões: “A vontade irrevogável (do imperador) não encontra obstáculos... Depois de trinta anos, o monarca não achou ainda quem lhe mostrasse os perigos do governo pessoal...” Sem temperamento de déspota, honesto e circunspecto, Pedro II teria voltado atrás da sua arbitrariedade política, se os chefes tivessem resistido a ela, como deviam, se eles concorressem para dar verdade ao regime representativo e fossem, de fato, legítimos detentores do poder em face do trono. Não houvesse políticos brasileiros – ministros – para fazer a guerra ao Paraguai, e o imperador teria recalcado as suas antipatias, teria recolhido o seu capricho, porque o sentimento unânime da nação era contra esse crime. E foram os famosos liberais! Um deles, Saraiva, no seu curtíssimo liberalismo, concebeu uma nova organização eleitoral – a eleição direta, com censo alto; apresentou a ideia a Pedro II, que discordou: Saraiva insistiu (como se aquilo merecesse insistência) e o imperador acabou cedendo – vencido, não convencido, teria ele dito ao chefe liberal. E vencido se confessaria, sempre, qualquer que fosse o motivo em causa, se os políticos tivessem cumprido o seu dever, pois é bem de ver que Pedro II não era um ânimo a criar por si, por puro motivo pessoal, uma crise revolucionária, qual seria a de proclamar-se ostensivamente superior à nação. Os políticos nada fizeram como resistência, nada fizeram no sentido de corrigir os vícios manifestos, e depurar o regime: podiam esperar que o próprio representante do trono viesse fazê-lo?... 

Em princípios de 1843, quando Pedro II era simples instrumento da camarilha, e não podia ser um poder pessoal, Feijó teve, então, a intuição da degradação a que estava reduzido o Brasil pela miséria da sua política: “... Se eu pudesse daria o exemplo de resistir às ordens ilegais, sem o que será sempre nominal a nossa liberdade... Uma nação que vê submissa a violação das suas instituições é indigna de ser livre. Já é escrava, e se não tem senhor, terá o primeiro que o quiser ser...” O primeiro foi Pedro II, não que o quisesse, mas porque o destino o colocou em face de quem não era digno de ser livre... Não foi porque o quisesse nem foi o personalismo do seu reinado quem corrompeu e aviltou a política brasileira. Efeitos tão sinistramente profundos, miséria tão desenvolvida, vão além da ação de um indivíduo, demônio ou herói que ele seja. Lembremo-nos, ainda, de que naqueles dias – de fastígio pessoal de Pedro II, essa carência de legalidade era comum a todos os neoibéricos: não havia nação, do México à Argentina, que não estivesse sob governo pessoal, apesar das constituições livres que possuíam. Muitos desses povos já se redimiram, ao passo que, para o Brasil, o governo pessoal tomou a forma abjeta – do mandonismo na ceva. O fato se explica, justamente, pela miséria da alma dos dirigentes.






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"Morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."

Cecília Costa Junqueira



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O Brasil nação: vol. I / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 332 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 35).


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O Brasil Nação - v1: § 39 – A choldra dos partidos – sobre a nação abandonada - Manoel Bomfim 


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O Brasil Nação - v1: § 42 – Pedro II - Manoel Bomfim


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