sábado, 9 de dezembro de 2017

20.O Estrangeiro: E como tal deverá ser castigado - Albert Camus

Albert Camus


SEGUNDA PARTE


Capítulo 4


20. E como tal deverá ser castigado



  MESMO DO LUGAR DOS RÉUS, é sempre interessante ouvir falar de nós mesmos. Durante os arrazoados do procurador e do meu advogado, posso dizer que se falou muito de mim e talvez até mais de mim, que do meu crime. Eram aliás assim tão diferentes, estes discursos? O advogado levantava os braços e pleiteava culpado, mas com atenuantes. O procurador estendia as mãos e pleiteava culpado, mas sem atenuantes. No entanto, uma coisa me incomodava vagamente. Apesar das minhas preocupações, apetecia-me por vezes intervir e o meu advogado dizia-me então: "Cale-se, para seu bem é melhor que se cale". 

De algum modo, tinham todo o ar de tratar deste caso à margem da minha pessoa. Tudo se passava sem a minha intervenção. Jogava-se a minha sorte sem que me pedissem a opinião. De tempos a tempos, tinha vontade de interromper toda a gente e de dizer: "Mas quem é afinal o acusado? É importante ser o acusado. E tenho coisas a dizer!" Mas, pensando bem, não tinha nada a dizer. Devo reconhecer, aliás, que o interesse que se tem em ouvir as pessoas, não dura muito tempo. Por exemplo, o discurso do procurador depressa me fatigou. Apenas me impressionaram ou despertaram a atenção alguns fragmentos, gestos ou tiradas inteiras, mas desligadas do conjunto. 


O fundo do seu pensamento, se bem o compreendi, é que o meu crime fora premeditado. Pelo menos, tentou demonstrá-lo. Como ele próprio dizia: "Darei a prova do que afirmo, meus senhores, e dá-la-ei duplamente. Sob a crua claridade dos factos em primeiro lugar e em seguida sob a iluminação sombria que me será fornecida pelo perfil psicológico desta alma criminosa". Resumiu os fatos a partir da morte da minha mãe, Relembrou a minha insensibilidade, a minha ignorância da idade dela, o meu banho de mar, no dia seguinte, com uma mulher, o cinema, Fernandel e por fim o caso com Maria. Levei tempo a compreender nesse momento, porque dizia "a amante" e para mim, ela chamava-se Maria. Chegou, em seguida, à história de Raimundo. Achei que tinha uma maneira de ver as coisas bastante clara. O que dizia não deixava de ser plausível. Eu escrevera a carta de combinação com Raimundo para atrair a amante deste e a entregar aos maus tratos de um homem "de moralidade duvidosa". Provocara, na praia, os adversários de Raimundo. Este ficara ferido. Eu pedira-lhe o revólver. Voltara atrás para me servir dele, sozinho. Tal como projetara, dera depois cabo do Árabe. Disparara uma vez. Esperara. E, "para ter a certeza de que o trabalho ficara bem feito", disparara mais quatro tiros, calmamente, conscientemente, pela certa. "E aqui está, meus senhores, disse o advogado de acusação. Acabo de traçar o fio dos acontecimentos que levaram este homem a matar com pleno conhecimento de causa. Insisto neste ponto. Pois não se trata de um crime banal, de um ato impensado que poderia ser atenuado por certas circunstâncias. Este homem, meus senhores, é um homem inteligente. Ouviram-no falar, não é verdade? Sabe responder. Conhece o valor das palavras. E não se pode dizer que tenha agido sem dar pelo que estava a fazer". 

Eu ouvia, e percebia que me consideravam inteligente. Mas não compreendia por que motivo as qualidades de um homem vulgar podiam erguer-se esmagadoramente contra um culpado. Era isto, pelo menos, o que mais me impressionava e deixei de ouvir o procurador até ao momento em que o ouvi dizer: "Podemos dizer, em sua defesa, que este homem exprimiu algum arrependimento? Nunca, meus senhores. Nem uma só vez no decurso da instrução do processo, pareceu emocionado com o seu crime abominável". Nesse momento voltou-se para mim e apontou-me com o dedo, continuando a fulminar-me, sem que na realidade eu compreendesse muito bem porquê. Não posso deixar de reconhecer, sem dúvida, que ele tinha razão. Não me arrependia muito do que tinha feito. Mas espantava-me uma atitude tão encarniçada. Gostaria de lhe poder explicar cordialmente, quase com afeição, que nunca me arrependera verdadeiramente de nada. Estava sempre dominado pelo que ia acontecer, por hoje ou por amanhã. Mas evidentemente, no estado a que me haviam levado, não podia falar a ninguém neste tom. Não tinha o direito de me mostrar afetuoso, de ter boa vontade. E tentei continuar a escutar, pois o procurador começou a falar da minha alma. 

Dizia que se debruçara sobre ela e que nada encontrara, senhores jurados. Dizia que, em boa verdade, eu não tinha alma e que nada de humano, nem um único dos princípios morais que existem no coração dos homens, me era acessível. "Não poderíamos sem dúvida censurar-lhe uma coisa destas, acrescentou. O que ele não teria possibilidades de adquirir, não podemos queixar-nos de que lhe falte. Mas no que se refere a este caso, a verdade negativa da tolerância deve transformar-se na virtude menos fácil, mas mais elevada, da justiça. Sobretudo quando o vazio de um coração como o que descobrimos neste homem se torna num abismo onde a sociedade pode sucumbir". Foi então que começou a falar outra vez da minha atitude para com a mãe.

Repetiu o que já dissera durante os debates. Mas falou muito mais longamente nisto, do que a respeito do crime, tão longamente que, a certa altura, passei a sentir apenas o calor do dia. Até ao instante, pelo menos, em que o advogado de acusação se deteve e, depois de um momento de silêncio, continuou numa voz baixa e compenetrada: "Este mesmo tribunal, meus senhores, vai julgar amanhã o mais abominável dos crimes: o assassínio de um pai". Na opinião dele, a imaginação recuava diante deste atroz atentado. Ousava esperar que a justiça dos homens saberia castigar sem piedade. Mas não receava afirmar que o horror que esse crime lhe inspirava quase cedia diante da minha insensibilidade. Ainda na opinião dele, um homem que matava moralmente a mãe devia ser afastado da sociedade dos homens, exatamente como aquele que levantava uma mão criminosa contra o autor dos seus dias. Em todos os casos, o primeiro preparava os atos do segundo, anunciava-os de algum modo e legitimava-os. "Estou persuadido, meus senhores, acrescentou elevando a voz, de que não acharão o meu pensamento excessivamente audacioso, se lhes disser que o homem ali sentado naquele banco é igualmente culpado do crime que o tribunal vai julgar amanhã. E como tal deverá ser castigado". Aqui, o procurador enxugou a cara brilhante de suor. Disse por fim que o seu dever era doloroso, mas que o cumpriria firmemente. Declarou que eu nada tinha a fazer numa sociedade cujas regras mais essenciais desconhecia e que eu não podia apelar para o coração dos homens, cujas reações elementares ignorava. "Peço-vos a cabeça deste homem, disse, e é sem escrúpulos que vos dirijo este pedido. Pois no decurso da minha longa carreira, tem-me acontecido pedir várias penas de morte, mas nunca como hoje, eu senti este penoso dever tão compensado, equilibrado, iluminado pela consciência de um imperativo sagrado e pelo horror que tenho a esta fisionomia humana onde nada leio que não seja monstruoso". Quando o procurador se sentou, houve uns longos momentos de silêncio. Quanto a mim, sentia-me atordoado pelo calor e pelo espanto. O presidente tossiu um pouco e, em voz não muito alta, perguntou-me se eu queria acrescentar alguma coisa. Levantei-me e, como tinha vontade de falar, disse, aliás um pouco ao acaso, que não tinha tido intenção de matar o Árabe. O presidente respondeu que era uma afirmação, que até aqui não percebia lá muito bem o meu sistema de defesa e que gostaria, antes de ouvir o meu advogado, que eu especificasse os motivos que inspiraram o meu ato. Redargui rapidamente, misturando um pouco as palavras e consciente do ridículo, que fora por causa do sol. Houve risos na sala. O meu advogado encolheu os ombros e, logo a seguir, deram-lhe a palavra. Mas ele declarou que era tarde, que precisava de muito tempo e que pedia o adiamento até logo à tarde. O tribunal concordou.






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A Constatação do Absurdo

Nascido e criado entre contrastes fundamentais, Albert Camus desde cedo aprendeu que a miséria engendra uma solidão que lhe é típica, uma austeridade toda sua, uma desconfiança da vida - mas a paisagem desperta uma rica sensualidade, uma eufórica sensação de onipotência, um orgulho desmedido de possuir a beleza inteiramente gratuita. Este aprendizado, feito a meio caminho entre a miséria e o sol, levou-o à consciência do que existe de mais trágico na condição humana: o absurdo, essa irremediável incompatibilidade entre as aspirações e a realidade.


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Camus, Albert, 1913-1960.
              O Estrangeiro
Título Original L'Étranger
Tradução de António Quadros
Edição Livros do Brasil
Lisboa
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