segunda-feira, 30 de outubro de 2017

19.O Estrangeiro: Tudo é verdade e nada é verdade - Albert Camus

Albert Camus


SEGUNDA PARTE


Capítulo 3


19. Tudo é verdade e nada é verdade



  AO APARECER, O PORTEIRO olhou-me e depois afastou os olhos, respondendo às perguntas que lhe dirigiram. Disse que eu não tinha querido ver a minha mãe, que tinha fumado, que tinha dormido e que tinha tomado café com leite. Senti então que qualquer coisa se levantava na sala e compreendi pela primeira vez que era culpado. Pediram ao porteiro para repetir a história do café com leite e a do cigarro. O advogado de acusação olhou-me com um brilho irônico no olhar. Nesse momento, o meu advogado perguntou ao porteiro se não tinha fumado também um cigarro comigo. Mas o procurador reagiu violentamente contra esta pergunta: "Quem é aqui o criminoso e que métodos são estes, que consistem em denegrir as testemunhas de acusação para lhes diminuir depoimentos que nem por isso ficam menos esmagadores?!" 

Apesar de tudo, o presidente disse ao porteiro para responder à pergunta. O velho replicou, com um ar embaraçado: "Sei que não andei bem, mas não ousei recusar o cigarro que este senhor me ofereceu". Em última instância, perguntaram-me se queria acrescentar alguma coisa. "Nada", respondi, "a não ser que a testemunha fala verdade. É certo que lhe ofereci um cigarro". O porteiro olhou-me um pouco espantado e com uma espécie de gratidão. Hesitou e em seguída disse que fora ele, que me oferecera café com leite. O meu advogado triunfou ruidosamente e declarou que os jurados saberiam formar a sua opinião. Mas o procurador, gritando mais alto, disse: "Sim. Os senhores jurados saberão formar a sua opinião. E não deixarão de concluir que um estranho podia oferecer café, mas que um filho devia recusá-lo diante do corpo daquela que o deu à luz". O porteiro regressou ao seu lugar. 

Quando chegou a vez de Tomás Perez, um bedel teve que o ajudar a ocupar o lugar das testemunhas. Perez disse que conhecera sobretudo a minha mãe e que a mim, só me vira uma única vez, no dia do enterro. Perguntaram-lhe o que tinha eu feito nesse dia e ele respondeu: "Não sei se compreendem, mas eu estava com um grande desgosto. Por isso, não vi nada. O desgosto impedia-me de ver. Porque para mim, era um grande desgosto. Cheguei mesmo a desmaiar. Por isso, não pude ver este senhor". O advogado de acusação perguntou-lhe se, ao menos, me vira chorar. Perez respondeu que não.

O procurador disse por sua vez: "Os senhores jurados saberão formar a sua opinião". Mas nesta altura, o meu advogado zangou-se. Perguntou ao velho Perez, num tom que se me afigurou exagerado "se tinha visto que eu não estava a chorar". Perez disse: "Não". O público riu-se. E o meu advogado, arregaçando uma das mangas, disse num tom peremptório: "Eis aqui a imagem deste processo. Tudo é verdade e nada é verdade". O procurador mostrava uma fisionomia fechada e rabiscava com o lápis nos papéis que tinha em frente. 

Após cinco minutos de suspensão, durante os quais o meu advogado me disse que tudo corria pelo melhor, foi ouvido o Celeste, que era citado pela defesa: A defesa, era eu. 

Celeste deitava, de tempos a tempos, olhares na minha direção e rodava o panamá nas mãos. Trazia o fato novo que punha aos domingos, quando ia comigo às corridas de cavalos. Mas julgo que não conseguira pôr o colarinho, pois apenas um botão de metal lhe conservava a camisa fechada. 

Perguntaram-lhe se eu era seu cliente e ele respondeu: "Sim, mas era também meu amigo", o que pensava de mim, e ele respondeu que eu era um homem, o que queria dizer com isso, e ele declarou que toda a gente sabia o que isso queria dizer, se notara que eu era taciturno, e ele reconheceu apenas que eu não falava por falar. O advogado de acusação perguntou-lhe se eu pagava regularmente as minhas despesas. Celeste riu-se e declarou: "Isso era entre mim e ele". Perguntaram-lhe ainda o que pensava do meu crime. Pôs então as duas mãos na barra e via-se que preparara qualquer coisa. Disse: "Para mim, foi uma desgraça. Toda a gente sabe o que é uma desgraça. Pois bem, na minha opinião, foi uma desgraça". Ia continuar, mas o presidente disse que estava bem e que muito lhe agradecia. Celeste ficou um pouco atrapalhado. Mas declarou que queria dizer mais coisas. Pediram-lhe para ser breve. Voltou a repetir que era uma desgraça. E o presidente disse-lhe: "Está bem, estamos entendidos. Mas nós estamos aqui justamente para julgar as desgraças deste gênero. Muito obrigado". Como se tivesse chegado ao fim da sua ciência e da sua boa vontade, Celeste voltou-se então para mim. Parecia-me que tinha os olhos brilhantes e os lábios trémulos. Tinha o ar de perguntar a si mesmo o que poderia ainda fazer.

Quanto a mim, não disse nada, não esbocei um único gesto, mas foi a primeira vez na minha vida que tive vontade de beijar um homem. O presidente disse-lhe que se podia ir embora. Celeste foi sentar-se no seu lugar. Durante o resto da audiência ali se deixou ficar, um pouco inclinado para a frente, os cotovelos nos joelhos, o panamá nas mãos, escutando tudo o que se dizia. 

Chegou a vez de Maria. Pusera um chapéu e estava muito bonita. Mas gostava mais dela com os cabelos soltos. Do sítio onde estava, eu adivinhava-lhe o peso ligeiro dos seios e reconhecia-lhe o lábio inferior, sempre um pouco inchado. Parecia muito nervosa. Perguntaram-Lhe imediatamente há quanto tempo me conhecia. Indicou a época em que trabalhava lá no escritório. O presidente quis saber que relações tinha comigo. Disse que era minha amiga. A uma outra pergunta, respondeu que, de facto, fazia tenção de casar comigo. O procurador, que folheava o processo, perguntou-lhe bruscamente quando começara a nossa ligação. Maria indicou a data. O procurador observou com um ar indiferente que lhe parecia ser apenas um dia depois da morte da minha mãe. Depois disse, com uma certa ironia, que não queria insistir numa situação delicada, que compreendia perfeitamente os escrúpulos de Maria (e aqui o tom da sua voz endureceu), mas que o seu dever o impelia a elevar-se acima das conveniências. Pediu-lhe, por conseguinte, para resumir o dia em que se dera o nosso encontro. Maria não queria falar mas, em face da insistência do procurador, contou o nosso banho, a nossa ida ao cinema e o encontro em minha casa. O advogado de acusação disse que, em consequência das declarações de Maria durante a instrução do processo, consultara os programas dessa data. Acrescentou que a própria testemunha diria que filme tinham ido ver. Com uma voz trémula, Maria indicou que era um filme de Fernandel. Quando ela acabou, o silêncio na sala era completo. O procurador levantou-se então, muito sério e com uma voz que me pareceu autenticamente emocionada apontou o dedo para mim e articulou lentamente: "Meus senhores, um dia depois da morte da sua mãe, este homem tomava banhos de mar, iniciava relações com uma amante e ia rir às gargalhadas, num filme cômico.

Não tenho nada a acrescentar". Sentou-se, no meio do silêncio geral. De repente Maria começou a soluçar, exclamou que não era isso, que a obrigavam a dizer o contrário do que pensava, que me conhecia muito bem e que eu não tinha feito nada de mal. Mas, a um sinal do presidente, o bedel levou-a e a audiência prosseguiu. 

Depois disto, mal ouviram Masson declarar que eu era uma pessoa honesta, "direi mesmo mais, uma excelente pessoa". Mal escutaram Salamano, quando recordou que eu fora muito bom para o cão dele e quando respondeu a uma pergunta a meu respeito, dizendo que eu metera a minha mãe no asilo porque já não tinha nada a dizer-Lhe. "É preciso compreendê-lo, dizia Salamano, é preciso compreendê-lo". Mas ninguém parecia compreender-me. Levaram-no. 

Chegou depois a vez de Raimundo, que era a última testemunha. Raimundo fez-me um pequeno sinal e disse imediatamente que eu estava inocente. Mas o presidente lembrou-lhe que não lhe pediam apreciações, pediam-lhe factos. Convidou-o a esperar as perguntas e depois responder. Pediram-lhe que especificasse as suas relações com a vítima. 

Raimundo aproveitou para dizer que era a ele, que o Árabe assassinado odiava, desde que lhe esbofeteara a irmã. O presidente perguntou então se a vítima não tinha nenhuma razão para me odiar. Raimundo disse que a minha presença na praia fora um mero acaso. O procurador perguntou-lhe então porque é que, se assim era, a carta que estava na origem do drama, fora escrita para mim. Raimundo respondeu que fora também um acaso. O procurador retorquiu que o acaso tinha costas largas, nesta história toda. Quis saber se fora por acaso que eu não interviera quando Raimundo esbofeteara a amante, por acaso que servira de testemunha no comissariado, por acaso ainda que as minhas declarações nessa altura se tinham revelado sem fundamento sério. Para acabar, perguntou a Raimundo o que fazia na vida e, como este respondesse que era "lojista" o advogado de acusação declarou aos jurados que a testemunha exercia uma profissão mais do que duvidosa. Eu era seu cúmplice e amigo. Tratava-se de um drama crapuloso da pior espécie, agravado pelo facto de estarmos em presença de um monstro moral. Raimundo quis defender-se e o meu advogado protestou, mas disseram-lhes que deixassem o procurador acabar o que estava a dizer. Este disse: "Pouco tenho a acrescentar. O acusado era seu amigo?", perguntou a Raimundo. "Sim, respondeu este, era meu amigo". O advogado de acusação fez-me então a mesma pergunta e eu olhei para Raimundo, que não desviou os olhos. Respondi: "Sim". O procurador voltou-se então para o júri e declarou: "O mesmo homem que, um dia depois da mãe ter morrido, se entregava à mais vergonhosa devassidão, matou por razões fúteis e para liquidar um inqualificável caso crapuloso". 

Voltou então a sentar-se. Mas o meu advogado, a paciência esgotada, gritou levantando os braços, de tal forma que as mangas, caindo para trás, descobriram as pregas de uma camisa engomada: "Enfim, estão a acusá-lo de ter assassinado um homem ou de lhe ter morrido a mãe?" 

O público riu-se. Mas o procurador levantou-se outra vez, ajustou a toga e declarou que era preciso ter a ingenuidade do ilustre defensor para não sentir que entre as duas ordens de factos, havia uma relação profunda, patética, essencial. "Sim, exclamou ele com força, acuso este homem de ter assistido ao enterro da mãe com um coração de criminoso".

Esta declaração parece ter provocado um efeito considerável sobre o juri e sobre o público. O meu advogado encolheu os ombros e limpou o suor que lhe cobria a testa. Mas ele próprio parecia abalado e compreendi nesta altura que as coisas não iam muito bem para mim. 

Em seguida, tudo se passou muito depressa. A audiência foi suspensa. À saída do tribunal e ao subir para o carro, reconheci durante breves instantes o cheiro e o calor das tardes de verão. Na obscuridade da minha prisão rolante, reencontrei um a um, no fundo do meu cansaço, todos os ruídos familiares de uma cidade que eu amava e de uma certa hora em que tantas vezes me sentira contente. O pregão dos vendedores de jornais no ar já mais fresco, os últimos pássaros no largo, o grito dos vendedores de sanduíches, o queixume dos eléctricos nas curvas íngremes da cidade e este rumor do céu antes da noite tombar sobre o porto, tudo isto reconstituía aos meus olhos um cego itinerário que já conhecia muito antes de entrar para a prisão. Sim, era a hora em que, há muito, muito tempo, eu me sentia contente. O que então me aguardava, era sempre um sono ligeiro e sem sonhos. E no entanto alguma coisa se modificara, pois com a expectativa do dia seguinte, foi a minha cela, que reencontrei enfim. Como se os caminhos familiares traçados nas noites de verão pudessem conduzir, tanto às prisões, como aos sonos inocentes.




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A Constatação do Absurdo

Nascido e criado entre contrastes fundamentais, Albert Camus desde cedo aprendeu que a miséria engendra uma solidão que lhe é típica, uma austeridade toda sua, uma desconfiança da vida - mas a paisagem desperta uma rica sensualidade, uma eufórica sensação de onipotência, um orgulho desmedido de possuir a beleza inteiramente gratuita. Este aprendizado, feito a meio caminho entre a miséria e o sol, levou-o à consciência do que existe de mais trágico na condição humana: o absurdo, essa irremediável incompatibilidade entre as aspirações e a realidade.


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Camus, Albert, 1913-1960.
              O Estrangeiro
Título Original L'Étranger
Tradução de António Quadros
Edição Livros do Brasil
Lisboa
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