sábado, 6 de outubro de 2012

Golos e Cânticos com mirra e incenso


Ensaio 09
baitasar
As pessoas acomodam os costumes nas suas maneiras com a vida. Constroem as próprias prisões, almas caridosas que se desapegam dos sonhos antropomórficos, mas não se tornam herbívoros, ainda têm as alucinações da carne. Para isso servem as grades do circo, nos mostram as feras e nos despertam, mas não nos deixam entrar na jaula para devorar as bestas donas de tudo: um transe hipnótico de matar ou morrer.
Adelaide e Sèzar acomodavam os costumes colorados ou gremistas com as maneiras das suas vidas, depois dos dias de chuva o céu trás os dias de sol. Humanizar — seja lá o que isso signifique — o circo é notar que perder ou vencer nunca é para sempre, às vezes o empate é uma solução altruísta. As brincadeiras não são para sempre, nem a morte se os mortos são esquecidos e desaparecem dos costumes, nunca existiram. Enquanto não são esquecidos estarão vivos para sempre. O que é para sempre é o que vive, o que nunca existiu apenas não existiu. Ninguém lembra.
O golo no futebol não é real no instante antes da bola entrar, nem na piscadela depois, as lembranças dele são as lágrimas e os risos que tornam o golo com vida de gente para sempre.
Adelaide não viu, mas guarda a memória do pai na sua memória, jogadas narradas de um jogo: Grêmio X Santos, Aírton, “o pavilhão”, frente a frente com Pelé e Coutinho, no estádio Olímpico — Os olhos de papai brilham. — o futebol tem personagens inesquecíveis.
Sèzar também sabe golos que não viu, estão pintados com cimento em sua vida, mas nada tem lhe doído mais, nestes últimos dias, que a tristeza sentida no golo do seu time contra o rival vermelho. Sèzar estava lá, um gremista disfarçado entre os colorados. E não pode conter a sua raiva — Como é que esse burro não enxerga? — ele sabia mais que o treinador colorado como vencer aquele grenal.
Por isso, no jogo seguinte voltaria aos braços da torcida gremista, na geral. Cantaria com o Daniel e o Gustavo
—        Esse amor descontrolado
            Nunca vou deixar de lado
            Eu te sigo onde for
            Eu te sigo tricolor...
Na geral gremista tem a avalanche, as bandeiras, a banda furiosa, os cantos, os gritos. É preciso pular e gritar, esquecer dos costumes da vida, às vezes, dá para ver o jogo, e no golo é o êxtase da avalanche — Tem que tá ligado!
Uma avalanche azul desce as escadarias da geral até o limite físico do muro, mas aquele eco esquisito não faz caso do muro, segue em frente, ultrapassa as grades, pula tijolos e argamassa, está lá dentro... no Olimpo — É assim que agradecemos e desafiamos aos grandes espaços do céu Olímpico.
Sèzar iria desafiar a própria tristeza, reencontrar o reconhecido, gritar a insânia. Lá, entre tantos guerreiros, a realidade se curva e aceita a vida daqueles personagens. É só o que importa, ficar empossado e encorajado em parecer o que não é: não é um guerreiro.
Toca a campainha, Adelaide abre a porta — Estou pronto... — ela caminha dois passos atrás, não responde. Sèzar fecha a porta, caminha dois passos à frente e pega em sua mão. A outra mão inquieta e suave toca em seus cabelos e afrouxa os músculos da nuca, impondo sem incomodar. Coisas de nada — ... que estranho medo de amar a mulher que amo.
Exagera as suas inseguranças e o arrebatamento o faz antecipar os próprios movimentos. Abraça Adelaide com paixão, ela oferece a boca inteira, molhada, atrevida: a via láctea e os sonhos. Está dobrado sobre os joelhos, ela em pé, os dedos enfiados em seus cabelos — Quero as reticências da tua língua esquiva, se enfia. — de joelhos, ele arrepende-se sem queixas, obedece, os dedos enfiados em seus cabelos: inteiros, molhados, atrevidos.
Precisa escavar a insubstancialidade da alucinação e da coisa nenhuma — Segura a minha mão... — ele não entende, ele já segura a sua mão — Segura a minha mão. — precisa aprender a genuína alegria dos afetos. Estavam ali, em pé, atrás da porta fechada, os olhos de um, os olhos da uma — Não esquece de fechar a porta... — ele não entende, ele já fechou a porta — Não esquece de fechar a porta. — encostar a porta da memória e abrir a fundura do homem, quando não sabemos como começar, iniciamos pelo princípio.
Estão sentados, mas tem alguma coisa que incomoda Sèzar, olha para os lados, para todos os lados, tudo aparece em seu lugar de sempre, Adelaide sentada a sua frente, nua — Por que você gosta de escrever? — não entende por que ela está nua — É tão difícil responder?
Não , não é difícil responder, ele pensa que é melhor ter histórias para contar do que ser a história que todos contam, mas por que ela precisa saber isso, ele não quer saber por que ela gosta de ler — É simples, eu gosto de ler porque eu quero encher a minha vida com personagens reais, não quero personagens de ficção que me rodeiam, apenas pra me comer.
—        Eu gosto de escrever porque gosto de brincar de cabra-cega comigo mesmo, escondendo de mim mesmo, inventando algumas verdades de mim mesmo e dos outros. — ele é para ela e ela é para ele, não os perturbo nem os acordo, até que queimem todo o fogo. E uma fumaça exalando mirra e incenso chegue ao fresco do dia e declinem as sombras, e o homem e a mulher cheguem ao monte da mirra, e ao outeiro do incenso.
E no golo... desçam com a avalanche.

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Leia também: 
Ensaio 08 - Gremistas ou colorados... misturam-se a realidade 
Ensaio 10 - Mexendo comigo, mexendo em mim...

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