quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada (final - Prefácio)

 Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1


1
Estudos de Costumes 
- Cenas da Vida Privada



Prefácio à Comédia Humana
por Honoré de Balzac

(final)





Ao ver-me amontoar tantos fatos e pintá-los tais quais são, com a paixão por elemento, algumas pessoas imaginaram, erradamente, que eu pertencia à escola sensualista e materialista, duas faces do mesmo fato, o panteísmo. Mas podiam, deviam talvez, enganar-se. Não professo a crença de um progresso indefinido, no que se refere às sociedades; creio no progresso do homem quanto a si mesmo. Os que querem ver em mim uma intenção de considerar o homem como criatura definitivamente realizada enganam-se, portanto, estranhamente. Seráfita, a doutrina em ação do Buda cristão, parece-me uma resposta suficiente a essa censura, aliás bastante leviana, levantada contra mim.

Em certos fragmentos desse longo trabalho, tentei popularizar os fatos admiráveis, posso dizer, os prodígios da eletricidade[23] que, no homem, se metamorfoseia numa potência incalculável, mas em que os fenômenos cerebrais e nervosos que demonstram a existência de um novo mundo moral alteram as relações indiscutíveis e necessárias entre os mundos e Deus. Em que é que os dogmas católicos ficariam com isso abalados? Se por fatos incontestáveis o pensamento for um dia incluído entre os fluidos que só se revelam por seus efeitos e cuja substância escapa aos nossos sentidos, mesmo ampliado por tantos meios mecânicos, acontecerá com isso o mesmo que com a esfericidade da Terra observada por Cristóvão Colombo, e com a sua rotação demonstrada por Galileu. Nosso futuro permanecerá o mesmo. O magnetismo animal, com cujos milagres me familiarizei desde 1820; as belas pesquisas de Gall, o continuador de Lavater;[24] todos aqueles que há cinquenta anos vêm trabalhando o pensamento como os ópticos trabalharam a luz, duas coisas quase semelhantes, concluem, quer a favor dos místicos, esses discípulos de São João, quer a favor de todos os grandes pensadores que estabeleceram o mundo espiritual, essa esfera onde se revelam as relações entre o homem e Deus.

Apreendendo bem o sentido da referida composição, reconhecer-se-á que atribuo aos fatos constantes, cotidianos, secretos ou patentes, aos atos da vida individual, às suas causas e aos seus princípios a mesma importância que até agora os historiadores atribuíram aos acontecimentos da vida pública das nações. A batalha ignorada que se fere, num vale do Indre, entre a sra. de Mortsauf e a paixão é talvez tão grande quanto a mais notável das batalhas celebradas (O lírio do vale). Neste último está em jogo a glória de um conquistador, no outro livro trata-se do céu. As desventuras dos Birotteau, o padre e o perfumista, são, para mim, as da humanidade. A Fosseuse (O médico rural) e a sra. Graslin (O cura da aldeia) são quase toda a mulher. Sofremos dessa forma todos os dias. Tive de fazer cem vezes o que Richardson não fez mais do que uma vez. Lovelace tem mil formas, pois a corrupção social toma as cores de todos os meios onde se desenvolve. Pelo contrário, Clarissa, essa bela imagem da virtude apaixonada, tem traços de uma pureza desesperadora. Para criar muitas Virgens é preciso ser Rafael. A literatura, sob esse ponto de vista, está, talvez, abaixo da pintura. Ser-me-á pois permitido, talvez, fazer notar quantas figuras irrepreensíveis (como virtude) se encontram nas
partes já publicadas desta obra: Pierrette Lorrain, Úrsula Mirouët, Constança Birotteau, a Fosseuse, Eugênia Grandet, Margarida Claës, Paulina de Villenoix, sra. Jules, sra. de la Chantérie, Eva Chandon, srta. d’Esgrignon, sra. Firmiani, Ágata Rouger, Renata de Maucombe; enfim, muitas personagens de segundo plano, que, embora menos postas em relevo do que aquelas, nem por isso deixam de apresentar ao leitor a prática das virtudes domésticas. José Lebas, Genestas, Benassis, o padre Bonnet, o médico Minoret, Pillerault, David Séchard, os dois Birotteau, o padre Chaperon, o juiz Popinot, Bourgeat, os Sauviat, os Tascheron e muitos outros não resolvem, acaso, o difícil problema literário que consiste em tornar interessante uma personagem virtuosa?

Não era pequena tarefa pintar as duas ou três mil figuras salientes de uma época, pois tal é, em definitivo, a soma dos tipos que cada geração apresenta e que A comédia humana comportará. Esse número de figuras, de caracteres, essa multidão de existências exigiam cenários e, perdoai-me a expressão, galerias. Daí as divisões tão naturais, já conhecidas, da minha obra em Cenas da Vida Privada, Provinciana, Parisiense, Política, Militar e Rural. Nestes seis grupos estão classificados todos os Estudos de Costumes que formam a história geral da sociedade, a coleção de todos os seus fatos e gestos, como diriam os nossos antepassados. Estes seis grupos correspondem, afinal de contas, a ideias gerais. Cada um deles tem o seu sentido, sua significação, e formula uma época da vida humana. Repetirei aqui, porém sucintamente, o que escreveu, depois de se inteirar de meu plano, Félix Davin, jovem talento arrebatado às Letras por uma morte prematura. As Cenas da Vida Privada representam a infância, a adolescência e seus erros, como as Cenas da Vida Provinciana representam a idade das paixões, dos cálculos, dos interesses e da ambição. Depois as Cenas da Vida Parisiense oferecem o quadro dos gostos, dos vícios e de todas as coisas desregradas que excitam os costumes próprios das grandes capitais, onde se encontram ao mesmo tempo o bem e o mal extremos. Cada uma dessas três partes tem sua cor local: Paris e a província, essa antítese social, forneceram seus imensos recursos. Não somente os homens, mas também os acontecimentos principais da vida são sintetizados por tipos. Há situações que se apresentam em todas as existências, fases típicas, e foi isso uma das exatidões que eu mais busquei. Procurei dar uma ideia das várias regiões de nossa bela terra. Minha obra tem a sua geografia, como tem a sua genealogia e suas famílias, seus locais e suas coisas, suas personagens e seus fatos, como tem seu armorial, seus
nobres e seus burgueses, seus artesãos e seus camponeses, seus políticos e seus janotas, seu exército, todo o seu mundo, enfim!

Depois de ter pintado nesses três grupos a vida social, faltava mostrar as existências excepcionais que resumem os interesses de vários ou de todos que estão, de algum modo, fora da lei comum: daí as Cenas da Vida Política. Terminada e completada essa vasta pintura da sociedade, não cumpriria mostrá-la no seu mais violento estado, indo para o exterior, quer para a defesa quer para a conquista? Daí as Cenas da Vida Militar, a parte ainda menos completa da minha obra, mas cujo lugar ficará reservado nesta edição, para que a integre quando a tiver concluído. Enfim, as Cenas da Vida Rural são, de algum modo, o entardecer desta longa jornada, se me é permitido assim denominar o drama social. Neste livro se encontram os mais puros caracteres e a aplicação dos grandes princípios de ordem, de política, de moralidade.

Tal é a base, cheia de tipos, cheia de comédias e de tragédias, sobre a qual se erguem os Estudos Filosóficos, segunda parte da obra, onde o meio social de todos os efeitos se encontra demonstrado, onde as devastações do pensamento são pintadas, sentimento por sentimento, e cuja primeira obra, A pele de onagro, liga de algum modo os Estudos de Costumes aos Estudos Filosóficos pelo elo de uma fantasia quase oriental, em que a própria vida é pintada em luta com o desejo, princípio de todas as paixões.

Acima estão os Estudos Analíticos, dos quais nada direi, porquanto só um foi publicado, a Fisiologia do Casamento.

Daqui a algum tempo deverei publicar duas obras do mesmo gênero. Primeiro a Patologia da Vida Social, mais tarde a Anatomia das Corporações de Ensino e a Monografia da Virtude.

Ao considerar tudo o que me resta fazer, dir-me-ão talvez o que meus editores disseram: “Que Deus lhe dê vida!”. Almejo apenas não ser tão atormentado pelos homens e pelas coisas como o tenho sido desde que empreendi este espantoso trabalho. Tive por mim, e isto agradeço a Deus, que os maiores talentos desta época, que os mais belos caracteres, que amigos sinceros, tão grandes na vida privada quanto aqueles o são na vida pública, me apertaram a mão dizendo: “Coragem!”. E por que não confessar que essas amizades, que demonstrações feitas aqui e ali por desconhecidos me amparam na minha rota, tanto contra mim mesmo como contra ataques injustos, contra a calúnia que tantas vezes me tem perseguido, contra o desânimo e contra essa esperança demasiado ardente, cujas palavras são interpretadas como as de um amor-próprio excessivo? Tinha resolvido opor uma impassibilidade estoica aos ataques e às injúrias: mas, por duas vezes, vis calúnias tornaram necessária a defesa. Se os partidários do perdão das injúrias lamentam que eu tivesse mostrado meu saber em esgrima literária, muitos cristãos acham que vivemos numa época em que é bom fazer ver que o silêncio tem a sua generosidade.

A propósito, devo advertir que só reconheço como obras minhas as que trazem o meu nome. Além de A comédia Humana, não existem de meu senão os Cent contes drôlatiques, duas peças de teatro e artigos avulsos, que, aliás, são assinados. Uso aqui de um direito inconteste. Mas esta desautorização, mesmo que atingisse obras nas quais eu tivesse colaborado, me é inspirada mais pela verdade do que pelo amor-próprio. Se persistissem em atribuir-me livros que, literariamente falando, não reconheço como meus mas cuja propriedade me foi confiada, eu permitiria dizerem, pela mesma razão que me leva a deixar o campo livre às calúnias.

A imensidade do plano, que compreende ao mesmo tempo a história e a crítica da sociedade, a análise de seus males e a discussão de seus princípios, autoriza-me, assim o creio, a dar à minha obra o título sob o qual hoje ela aparece: A comédia humana. Será ambicioso? Não será apenas justo? É o que o público decidirá, quando a obra estiver terminada.

Paris, julho de 1842




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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.

Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844.[1] Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).

Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava.[1] De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.


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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Balzac, Honoré de, 1799-1850. 
          A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac;                            orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São                  Paulo: Globo, 2012. 

          (A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1                    0.000 kb; ePUB 

1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série. 

12-13086                                                                               cdd-843 

Índices para catálogo sistemático: 
1. Romances: Literatura francesa 843

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[23] Os prodígios da eletricidade: refere-se às experiências de Mesmer relativas aos fenômenos de magnetismo animal ou, como se diria hoje, de espiritismo, pelos quais Balzac sempre se interessou vivamente.

[24] Franz Josef Gall (1758 -1828), fisiologista e filósofo alemão, fundador da ciência da frenologia. Segundo sua doutrina, hoje abandonada, as protuberâncias do crânio permitem tirar conclusões acerca das disposições psíquicas do indivíduo. Balzac foi um adepto entusiasta desta teoria, que aplicou em grande número de retratos de suas personagens, tão bem como as ideias do filósofo protestante e rousseauísta Johann Kaspar Lavater (1741-1801), inventor da fisiognomonia, isto é, da ciência de julgar o caráter de uma pessoa pelas feições de seu rosto.




Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada - Ao "Chat-Qui-Pelote" (1)



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