quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

histórias de avoinha: a sombra predileta

mulheres descalças


a sombra predileta
Ensaio 94B – 2ª edição 1ª reimpressão



baitasar


cansei de perder-me, é difícil viver com alegria quando enxergamos os muros da não vida que erguemos no quotidiano deslambido, sutil e deformador do tempo que não nos resta. foram tantas desistências. são tantos desabamentos. é preciso regar-se ao ensombrar o dia para brotar no clarear com o seu melhor amor pela vida. longe do amor, agora me parece tudo tão inútil, um desperdício de bem-querer, um abatimento do apego, desejo com desconto, devoção com mais alvoroço que amorosidade. o amor se cansa com tanta tristeza. fica frio e distante, não morre, mas precisa saber e se ouvir

quero de volta o mundo das amigas que me perguntavam se precisava de alguma coisa, qualquer coisa, mesmo quando não restava mais nada por fazer ou dizer. elas me fazem falta pra fazer o reencontro de mim mesma: a criança e a mulher. mulheres que foram se dispersando dentro de mim, pelo mar afora. mulheres que fui afugentando até ficar só, corria pra dentro de mim mesma, mar adentro encrespado e furioso

se eu lamento?

lastimo, sim. outra vida não me vai nascer

longe delas, sem as notícias, sem saber, sem pensar, sem perdoar, fui enfraquecendo. vivi na penumbra das lembranças. em cada uma que partia acreditava que estava me esparramando pra voltar um dia. um porto seguro pra quem nunca deixou pra trás tudo. nunca voltaram

em parte, é verdade, estava me espalhando, mas há uma outra parte de mim, feita de carne e osso, essa ficou mergulhada no mesmo poço, todos esses anos, afogando outras vontades, tramando outras memórias. meus ossos se recordam quando o tempo está pra chuva e doem pra me avisar. os músculos reclamam de fadiga pra me lembrar que o coração - já não tão forte - sofre com a agitação do balanço dos quadris, o aviso é pra ter calma quando dançar. caminho mais lenta,  não pinto os cabelos que mais seguido ficam brancos, falo mais baixo e escuto menos, a pele segue encrespando

essa ideia de ficar parada no mesmo lugar me parecia boa: não arriscar outra vida possível, outros movimentos, outros caminhos, outros encontros, se já tinha essa vida não tão boa; até mesmo ruim, mas já tão conhecida: uma suportável adesão à morte. no começo não sabia – ou fingia não saber – que podia ter muitas outras vidas boas; acho que foi o medo de me comprometer depois que fosse tarde demais. então, esperava que fosse tarde demais

hoje, acho que estava com medo de desfazer a mim mesma nas águas de um temporal, ninguém se esparrama sem descoser a própria carne. escolhi as águas plácidas, descansadas e mansas do poço pra ficar longe dos olhos, das mãos e dos corações daquelas mulheres que me assustavam com suas partidas e promessas de voltar que nunca se cumpriam

meu coração reclama as mãos, os olhos e a poeira das amigas. sinto falta deste mundão de mulheres falantes. acreditei que estaríamos sempre juntas. só eu fiquei com as lembranças da vida sem muitos caminhos da villa e as deslembranças traiçoeiras do pensamento

Milagres!

se existe um mundo de amigas, outro de conhecidas e desconhecidas? acredito que o mundo é só dois por fora: aparência e fingimentos, mas por dentro somos muitas coisas que não contamos pra ninguém, irmãs ou amigas, coisas secretas que preferimos deixar anônimas, é isso, somos todas desconhecidas na fundura dos nossos subterrâneos

você e eu, também? sim, milagres. mas somos uma só! uma só? sim, somos a mesma milagres. não, milagres, somos muitas milagres. abanamos a cabeça juntas

Milagres!

vai logo, não faça a moça esperar. eu não, vai você. não, é a tua vez. vai você só mais essa vez, a minha novela não acabou. vai logo, não faça a moça ficar desassossegada. mas que droga. vai vai, precisamos deste emprego

Sim, dona Adelaide.

E o chimarrão, Milagres?

Deixei perto da janela, apontei com a mão mole e frouxa do descaso, lá estava ele, no mesmo lugar, abandonado, sem encanto, anônimo

Isso é lugar, Milagres?

rodei os calcanhares metade da meia-volta e fui até a janela, sem devaneios ou estranheza ou muxoxos. examinei a chaleira e a cuia. a água perdeu a quentura e a erva esfriou, Vou trocar a erva-mate da cuia e aquecer a água.

Obrigada, Milagres.

vai você, eu vou ficar. tá

Sèzar, desde que nasci sou coisa nenhuma.

a moça e o moço continuavam com a mesma conversa do mesmo jogo que separava os contra e os que num é contra. coisa boba. eu continuava a mesma sombra descalça qui oiava desta janela pra pedra da infâmia. estiquei as vista inté furá a barricada dos tempo de tá e num tá, de sê e num sê mais

as rua da terra e barro recebia os pé pretu descalço. o que parece rebeldia ou dureza era só o feitio dos branco marcá seus escravizado. hôme ou muié, piquininina ou véia, escravizado tinha obrigação de cumprí as lei qui mandava andá sempre descalço.
pretu escravizado num podia sê visto usando cuidado de resguardo nos pé. era crime grave desobedecê as lei dos pé no chão. o castigo era recebido na pedra da infâmia, pra tudo qui é gente e num é gente vê. um bão exemplo vale ôro. a conta das chibatada e a força de cada açoite ficava na vontade do dono. os mandamento das lei branca num tem discussão nem pode sê desobedecida

pru qui? us pretu puruguntava

pra modo de num gastá com vestimenta prus pé, um qui otro pretu a respondia

pra modo de marcá us pretu, dizia otro tanto de pretu

pode sê sim e tumbém do otro jeito sê sim, mais, no fim de tudo, é otra meió arrumação pra mostrá qui os pretu num é gente como os branco é, e se num é gente é qualqué coisa qui pode sê escravizado. caminhá com os pé no chão como os bicho inté num tê mais serventia ou coisa nenhuma sê sim

oiava da janela as rua da terra e barro, perto da pedra da infâmia tava uma preta, num lembrava de tê visto antes. aqui do longe, escondida dentro da sombra atrás da janela, sem firmá muntu as vista, dava pra vê a formosura e a firmeza qui ela tinha no tabulêro. tinha veiz qui vozeava pru alto, otras veiz mexericava inté parecê qui num falava, mais parecia qui na volta dela a luz do dia tinha tanto mais atrevimento qui os branco fugia de medo

os branco tinha medo do palavreado dos pretu livre qui vive do otro lado da estrada das água. um palavreado qui num podia se repetido na villa pruqui os branco num sabia entendê, mais a linda muié preta da luz prateada e do tabulêro no chão num aparentava tê medo da covardia e grosseria dos branco. ela fechava os óio e parecia pedí e oferecê ajuda na língua dos pretu livre. um palavreado qui num podia sê dito pruqui os branco ameaçava e urrava qui precisava sê esquecido, Isso é coisa do diabo. É feitiçaria!

num dá pra durumí e num imaginá otra vida sem corrente e sem castigo, sem siô e sem siá pra sempre

Milagres!

Sim, siá.

a siá dona de tudo - qui o siô pedro francisco permitia ela tê - tava parada na porta do quarto do marido. coloquei atenção pra siá. ela oiô com a dignidade qui avisa dos perigo qui as duas vive

Estou esperando o meu café.

A siá Maria Carolina me perdoe, mais o siô Pedro Francisco deixô mandamento pra primêro evacuá todo o quarto e as rôpa da cama usada.

a siá dona de quase tudo – dona de tudo menos do siô pedro francisco qui é dono da siá maria carolina – ficô apertada pelo dito, oiô pra dentro do quarto, E é da janela que a mucama vai fazer a arrumação?

Não, siá, me a desculpe. Abri um lado da janela pra modo de vê meió o serviço e extraviei os óio nos movimento da rua.

ela examinava com cautela o quarto, Nada parece ter acontecido, ou tudo foi apagado ou a siá fez qui num viu o cesto no chão com a trôxa das rôpa e os fruto pegajoso dos jorro de mel qui só num engravida as trôxa branca

continuei parada, nas mão dessa preta as rôpa nova pra cama. a siá num sabia qui o siô dono de tudo – e dela, tumbém  – durumiu na casa. os dois tem quarto separado, assim os horário e as vontade tão diferente um dotro num atrapaiava o descanso qui é merecido um dotro. era as palavra usada pelo siô pedro quando queria fazê as própria vontade de usá a cama com descaso da siá maria, qui parecia num sabê qui nunca ia sê mais qui era, uma sombra. e nunca seria a sombra predileta, mais era a sombra dona de quase tudo. num sei se é só isso qui as muié branca qué, mais é só isso qui os hôme qué tê: uma sombra pra se refrescá sem tormento e com afobação. sê muié é munta sina, mais sê muié escravizada é num tê um destino de sorte, é sê obrigada vivê e morrê sem otra sina qui a servidão. isso é o pió da tristeza qui desatina e entristece o espiritu, inté ele vomitá os tijolo da dô desperdiçada

na noite qui passô, siá maria carolina num desistiu de tê o acompanhamento do siô seu esposo. a escuridão da noite já tinha entrado no sobrado, o acendedô da iluminação das rua já fazia muntu qui acendia as lanterna com sua tocha de fogo, quando a siá ordenô os último arranjo pra uma das preta escravizada da família, eu, Milagres!

Aqui, siá Maria Carolina.

Vou me retirar para o meu quarto. Logo que você e a Sebastiana terminarem as tarefas de limpar e guardar, venha me ajudar.

Sim, siá.

ela se foi pro quarto, eu me fui pra sebastiana. a cantoria se soltô, Cheguei, preta Tiana!

Ué! Pensei qui só um milagre pra fazê ocê se chegá pra cá.

Inté parece... peguei nos pano de secá pra guardá, ela dançava os passo de toque na pia de lavá, eu caminhava os passo de Mãe África pra lá e cá


Oyá tem coroa de lôro
quando sopra
bambu enverga 

Iansã tem uma taça de ôro
quando sopra
bambu num quebra

era lavá e secá e guardá


Toca o barravento
qui Iansã já vai raiá
mistura agerrê
cabula e ijexá 

Venta, venta Iansã
Eparrey Oyá!

era lavá e secá e guardá


Mensagêro veio dizê
Mãe da África que falá com ocê 

Brinca no vento, Oyá
Borboleta de pai Oxalá
Deusa do raio,
Senhora da morte,
Iansã é o vento da sorte

quando entrei no quarto, siá tava oiando um livrório mais grande qui os otro livro. o livrório ficava na cabecêra da cama, junto da lamparina, Você já leu a Bíblia, Milagres?

U qui é essa bíblia?

abriu o livrório e alisô com as mão a gaiada das fôia. a bem da verdade, era munta gaiada, É um livro muito importante que nos fala do caminho até o céu.

U qui é esse céu?

foi a primêra veiz qui oiô pra mim depois qui entrei no quarto, tava oiando sério, Um lugar muito bonito que Deus Nosso Senhor criou para nos receber de braços abertos.

Us pretu tumbém?

apertô bem o livrório nos braço, Não sei. Acho que sim...

Prus pretu continuá escravizado pelos branco?

Não. Acho que não...

Hum... o céu é diferente daqui? É sortido?

Sim.

E pru qui aqui num pode sê como no céu?

Porque no céu Deus não permite maldade.

Hum... e pru qui ele facilita aqui?

Os homens fazem as maldades pelo seu livre arbítrio.

Num é descuido?

Não.

Hum... o céu deve tá abarrotado dos pretu qui sofre as maldade do arbítrio dos branco. O céu é um lugá prus pretu?

Não sei. Deus Nosso Senhor há de reservar um lugar só para vocês.

Hum... u qui é esse deus?

Alguém muito distinto com muitos poderes que, às vezes, parece gostar da própria preguiça e das suas crises com bocejos de sono.

arregaiêi os óio, a siá parecia muntu braba, mais num sei o certo: se tava com brabeza pro lado de deus ou pro lado do siô pedro

Confesso que me irrita tanta prostração. Outras vezes, é preciso escolher com sensibilidade as palavras para não ferir sua cabeça azul, é quando se mostra egoísta, invejoso e ambicioso... homens tarados por qualquer rabo de saia.

E deus tumbém é tarado?  Num quero esse céu qui parece sê o cemitério dos encantamentos e das imaginação.

voltô firmá as vista, direto nos meu ôio, Não estou falando de Deus ou do sinhô Pedro. Estou reclamando de todos os homens, girô os pé e foi na direção do quarto de banho. o único lugá qui juntava os dois quarto

Milagres, não responde se você não sabe o que dizer... escuta.

engoli as palavra qui já ia saindo. achei meió ajudá siá maria carolina no banho com a língua escondida. sô precavida. já escutei história dos pretu qui ficô sem a língua pruqui o gato branco comeu, Exagere no perfume da flor do campo nas águas. Sinhô Pedro Francisco gosta da cama muito cheirosa.

e ficô pronta, caso o siô fosse lhe fazê uso. coisa qui eu duvidava. em todo caso, o chêro da flô do campo qui quase nunca é apanhada ou semeada espaiô pelo quarto. um camisolão branco e solto sobre o corpo quente e esperançoso. uma sombra bunita, Nada acontecerá se você não escovar meus cabelos.

Num seja purisso, siá...

ela sentô oiando pru espêio e escovei mais qui cem veiz os cabelo cumprido e preto. eles descia inté depois da cintura, Milagres!

U qui foi agora, siá Maria Carolina?

a dona de quase tudo se abraçô no livro das ameça e promessa, depois se colocô com os joêio no chão e os braço na cama, Ajoelha aqui, reza junto comigo. Nada acontece se não rezamos.

dobrei as perna e coloquei os dois joêio no chão, Assim?

Isso, Milagres. Repete comigo: Sinhô perdoa os meus pensamentos ruins. Sinhô perdoa os meus pensamentos ruins.

fechei os óio pra dizê as palavra qui a siá num conseguia dizê, Siô Pedro Francisco perdoa as imaginação e as intenção da siá Maria Carolina, é a tentação qui precisa se acalmá e o siô precisa ajudá.

O que você está dizendo?

Rezando pru siô Pedro lhe acudi...

ela ergueu os óio e os jôeio

Milagres! É para Deus que rezamos!

rezei mais qui cem veiz pra deus tê dó dos joêio; a língua ficô adormecida. num apanhei, mais foi um quase de nada qui num deixô ela soltá a raiva em mim. depois, ajudei a siá deitá na cama vazia. otra noite qui durumiu sem sabê notícia do marido

uma lástima tanto rezamento perdido


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