quinta-feira, 13 de outubro de 2016

16.O Livro dos Abraços - Dizem as paredes/2 - Eduardo Galeano

Eduardo Galeano


16. O Livro dos Abraços



Dizem as paredes/2 


Em Buenos Aires, na ponte da Boca: Todos prometem e ninguém cumpre. Vote em ninguém. 

Em Caracas, em tempos de crise, na entrada de um dos bairros mais pobres: 
Bem-vinda, classe média. 

Em Bogotá, pertinho da Universidade Nacional: 
Deus vive. 

Embaixo, com outra letra: 
Só por milagre. 

E também em Bogotá: 
Proletários de todos os países, uni-vos! 

Embaixo, com outra letra: 
(Ultimo aviso.) 



A vida profissional/1


Em fins de 1987, Héctor Abad Gómez denunciou que a vida de um homem não valia mais do que oito dólares. Quando seu artigo foi publicado num jornal de Medellín, ele já tinha sido assassinado. Héctor Abad Gómez era o presidente da Comissão de Direitos Humanos. 


Na Colômbia, é difícil morrer de doença. — Como vosmecê quer o cadáver? O matador recebe a metade, por conta. Carrega a pistola e faz o sinal-da-cruz. Pede a Deus que o ajude em seu trabalho. 

Depois, se a pontaria não falhar, recebe a outra metade. E na igreja, de joelhos, agradece o favor divino.



Crônica da cidade de Bogotá


Quando as cortinas baixavam a cada fim de noite, Patrícia Ariza, marcada para morrer, fechava os olhos. Em silêncio agradecia os aplausos do público e também agradecia outro dia de vida roubado da morte. 

Patrícia estava na lista dos condenados, por pensar à esquerda e viver de frente; e as sentenças estavam sendo executadas, implacavelmente, uma após a outra. 

Até sem casa ela ficou. Uma bomba podia acabar com o edifício: os vizinhos, respeitadores da lei do silêncio, exigiram que ela se mudasse. 

Patrícia andava com um colete à prova de balas pelas ruas de Bogotá. Não tinha outro jeito; mas era um colete triste e feio. Um dia, Patrícia pregou no colete algumas lantejoulas, e em outro dia, bordou umas flores coloridas, flores que desciam feito chuva sobre seus peitos, e assim o colete foi por ela alegrado e enfeitado, e seja como for conseguiu acostumar-se a usá-lo sempre, e já não o tirava nem mesmo no palco. 

Quando Patrícia viajou para fora da Colômbia, para atuar em teatros europeus, ofereceu o colete anti-balas a um camponês chamado Júlio Cânon. 

Júlio Cânon, prefeito do povoado de Vistahermosa, tinha perdido à bala a família inteira, só como advertência, mas negou-se a usar o colete florido: 

Eu não uso coisas de mulheres — disse. 

Com uma tesoura, Patrícia arrancou os brilhos e as flores, e então o colete foi aceito pelo homem. 

Naquela mesma noite ele foi crivado de balas. Com colete e tudo.



Elogio da arte da oratória


No poder, existe divisão de trabalho: o exército, os grupos armados e os assassinos profissionais cuidam das contradições sociais e da luta de classes. Os civis cuidam dos discursos. 

Em Bogotá existem várias fábricas de discursos, embora só uma das empresas, a Fábrica Nacional de Discursos, tenha telefone registrado na lista. Estes estabelecimentos industriais discursaram as campanhas de numerosos candidatos à presidência, na Colômbia e nos países vizinhos, e habitualmente produzem discursos sob medida para interpelar ministros, inaugurar escolas ou cárceres, celebrar bodas ou aniversários e batizados, comemorar próceres da história ou elogiar defuntos que deixam vazios impossíveis de serem preenchidos: — Eu, talvez o menos indicado...



A vida profissional/ 2


Têm o mesmo nome, o mesmo sobrenome. Ocupam a mesma casa e calçam os mesmos sapatos. Dormem no mesmo travesseiro, ao lado da mesma mulher. A cada manhã, o espelho lhes devolve a mesma cara. Mas ele e ele não são a mesma pessoa: 

E eu, o que tenho a ver com isso? — diz ele, falando dele, enquanto sacode os ombros. 

Eu cumpro ordens — diz, ou diz: 

Sou pago para isso. Ou diz: 

Se eu não fizer, outro faz. Que é como dizer: 

Eu sou o outro. 

Frente ao ódio da vítima, o verdugo sente estupor, e até uma certa sensação de injustiça: afinal, ele é um funcionário,um simples funcionário que cumpre seu horário e suas tarefas. Terminada a jornada extenuante de trabalho, o torturador lava as mãos. 

Ahmadou Gherab, que lutou pela independência da Argélia, me contou. Ahmadou foi torturado por um oficial francês durante vários meses. E a cada dia, às seis em ponto da tarde, o torturador secava o suor da fronte, desligava da tomada a máquina de dar choques e guardava os outros instrumentos de trabalho. Então se sentava ao lado do torturado e falava de sua mulher insuportável e do filho recém-nascido, que não o deixara grudar o olho a noite inteira; falava contra Orã, esta cidade de merda, e contra o filho da puta do coronel que... 

Ahmadou, ensanguentado, tremendo de dor, ardendo em febre, não dizia nada.



A vida profissional/3


Os banqueiros da grande bancaria do mundo, que praticam o terrorismo do dinheiro, podem mais que os reis e os marechais e mais que o próprio Papa de Roma. Eles jamais sujam as mãos. Não matam ninguém: se limitam a aplaudir o espetáculo. 

Seus funcionários, os tecnocratas internacionais, mandam em nossos países: eles não são presidentes, nem ministros, nem foram eleitos em nenhuma eleição, mas decidem o nível dos salários e do gasto público, os investimentos e desinvestimentos, os preços, os impostos, os lucros, os subsídios, a hora do nascer do sol e a freqüência das chuvas. 

Não cuidam, em troca, dos cárceres, nem das câmaras de tormento, nem dos campos de concentração, nem dos centros de extermínio, embora nesses lugares ocorram as inevitáveis conseqüências de seus atos. 

Os tecnocratas reivindicam o privilégio da irresponsabilidade: 

Somos neutros — dizem.






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Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989


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17.O Livro dos Abraços - Mapa-múndi/1 - Eduardo Galeano

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