quarta-feira, 6 de abril de 2016

4. Do Livro do Desassossego - Bernardo Soares

Fernando Pessoa



4. Do Livro do Desassossego - Bernardo Soares 




29. 


"Tinha-me levantado cedo e tardava em preparar-me para existir."

"Era a ocasião de estar alegre. Mas pesava-me qualquer coisa, uma ânsia desconhecida, um desejo sem definição, nem até reles. Tardava-me, talvez, a sensação de estar vivo. E quanto me debrucei da janela altíssima, sobre a rua para onde olhei sem vê-la, senti-me de repente um daqueles trapos húmidos de limpar coisas sujas, que se levam para a janela para secar, mas se esquecem, enrodilhados, no parapeito que mancham lentamentamente." 

* * * 


36. 

"São as pessoas que habitualmente me cercam, são as almas que, desconhecendo-me, todos os dias me conhecem com o convívio e a fala, que me põem na garganta do espírito o nó salivar do desgosto físico. É a sordidez monótona da sua vida, paralela à exterioridade da minha, é a sua consciência íntima de serem meus semelhantes, que me veste o traje de forçado, me dá a cela de penitenciário, me faz apócrifo e mendigo." 

* * * 


39. 

"Pesa-me, realmente me pesa, como uma condenação a conhecer, esta noção repentina da minha individualidade verdadeira, dessa que andou sempre viajando sonolentamente entre o que sente e o que vê." 

"E, por fim, tenho sono, porque, não sei porquê, acho que o sentido é dormir." 

* * * 


40. 

"A humanidade tem medo da morte, mas incertamente." 

* * *


41. 

"E não sei o que sinto, não sei o que quero sentir, não sei o que penso nem o que sou." 

"Verifico que, tantas vezes alegre, tantas vezes contente, estou sempre triste." 

"Não vejo, sem pensar." 

"Não há sossego - e, ai de mim!, nem sequer há desejo de o ter." 

* * * 


42. 

"Assim como lavamos o corpo deveríamos lavar o destino, mudar de vida como mudamos de roupa - não para salvar a vida, como comemos e dormimos, mas por aquele respeito alheio por nós mesmos, a que propriamente chamamos asseio. Há muitos em quem o desasseio não é uma disposição da vontade, mas um encolher de ombros da inteligência. E há muitos em quem o apagado e o mesmo da vida não é uma forma de a quererem, ou uma natural conformação com o não tê-la querido, mas um apagamento da inteligência de si mesmos, uma ironia automática do conhecimento. Há porcos que repugnam a sua própria porcaria, mas se não afastam dela, por aquele mesmo extremo de um sentimento , pelo qual o apavorado se não afasta do perigo. Há porcos de destino, como eu, que se não afastam da banalidade quotidiana por essa mesma atracção da própria impotência. São aves fascinadas pela ausência de serpente; moscas que pairam nos troncos sem ver nada, até chegarem ao alcance viscoso da língua do camaleão. Assim passeio lentamente a minha inconsciência consciente, no meu tronco de árvore do usual. Assim passei o meu destino que anda, pois eu não ando; o meu tempo que segue, pois eu não sigo."



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Do Livro do Desassossego - Bernardo Soares
Bernardo Soares (heterônimo de Fernando Pessoa)
Fonte: http://www.cfh.ufsc.br/~magno/


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Leia também:

3. Do Livro do Desassossego - Bernardo Soares: "Tudo me interessa e nada me prende."


5. Do Livro do Desassossego - Bernardo Soares: "Releio passivamente, recebendo o que sinto como uma inspiração e um livramento

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