terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Teatro Pedagógico: o armário

Parábolas de uma Professora



o armário


baitasar e paulo e marko





olho para o meu armário, com suas portas abertas, dou um passo à frente, fico na ponta dos pés e mergulho a cabeça para o seu interior, sinto uma força avassaladora me empurrando. no início não entendo, resisto, tento gritar, não escuto minha voz, meus gritos. e continuo sendo empurrada. meus pés já não tocam mais o chão, minha cabeça, meus braços, meu tronco, meu sexo, sim, ainda tem sexo, minhas pernas, meus pés. paro de resistir. estou toda dentro do meu armário. é apenas mais uma das tantas reuniões de professores e professoras em que já participei. lembro muitas falas, gritos, xingamentos, lágrimas, sorrisos, abraços, despedidas, decido não parar em determinado lugar, disponho-me a permitir o julgamento que minha memória fizer das vidas que vi, sustentei, e que agora queira mostrar-me. meu entorno é asfixiante. falta-me o amor e um cigarro

Gostaria de saber como vai se resolver a questão dos nossos dias em haver?

Não sei, colegas. O final do ano letivo está aí, chegando devagarinho, mas vindo, e não tenho a solução.

Deveríamos deixar para o ano que vem.

Não concordo. Vamos ter o ponto eletrônico.

isso não é agora. ponto eletrônico será no futuro. estou misturando alhos com bugalhos

Merda.

Eu também não concordo, o futuro só a Deus pertence.

Colegas, não sei o que fazer!

Ah! Tenha paciência, precisamos encontrar uma solução, afinal tenho dez turnos em haver.

Eu tenho cinco.

Tenho três.

Gurias, nem tomei nota dos meus, como é que fico sabendo quantos dias tenho em haver?

Posso sugerir?

Claro!

Poderíamos organizar um calendário oculto, onde em determinados dias uma colega gozaria de um desses dias e sua turma seria dividida entre as demais turmas da mesma série, é lógico.

Não entendi.

Eu entendi, me deixem explicar. Você tem dias em haver, as razões para teres estes dias não vêm ao caso, importa que por qualquer razão você trabalhou além do seu regime de trabalho e precisas ser paga, em dinheiro não será feito, logo irás deixar de vir à escola trabalhar.

Como que não importa saber porque as pessoas têm tantos dias em haver?

O colega que tem dia em haver veio trabalhar fora do seu expediente.

Fazer o quê?

O seu trabalho.

A pedido de quem?

Óbvio que foi da direção, atendendo necessidades da escola.

Ah! E quem controla a farra?

A Direção.

Ah!

Isto eu já entendi. Quero entender como será feito o pagamento dos turnos trabalhados.

Já chego lá. Exemplo: amanhã você não virá à escola, irá tirar um dia em haver, os alunos da tua turma serão divididos e colocados nas demais turmas da mesma série.

Não concordo.

Por quê?

Gurias, estamos no final do ano e tenho alunos que precisam de um olhar ainda mais próximo. Com mais alunos na turma, e crianças que não conheço, será impossível qualquer tentativa de recuperar ou construir conhecimento com esses alunos.

E ainda dá pra recuperar algum aluno?

Meu Deus! Estamos em novembro, temos um mês de aulas, se nesse tempo que falta não dá pra fazer mais nada, então que se encerre o ano letivo agora!

Tudo bem, tudo bem, e se dispensares os teus alunos já aprovados ficando com uma turma reduzida para poderes acolher estes outros alunos?

É brincadeira não é, gurias? Estão a fim de tirar um sarro comigo! Vou mandar meus alunos para casa e receber os alunos de outras turmas? Estamos transferindo a solução de um problema nosso para os alunos. Eles não têm nada com isso.

minhas memórias são interrompidas por dores nas pernas e braços, este armário não foi feito para mim, nem essas reuniões que sequer foram administrativas ou pedagógicas. fico com o corpo todo dolorido pelas dobraduras forçadas e com o sentido apenas de conter-me dentro do armário. ponho a cabeça para fora dele, olho à direita e à esquerda, ninguém no corredor, baixo o olhar, o chão está longe, vai ser mais difícil sair do que entrar, coloco um dos braços para fora e respiro, decido que não vou sair rastejando. existem lembranças que não ajudam, Entenderam, O quê, Os números romanos, Dá pra repetir, Claro, Por que precisamos estudar esses números, Muitos relógios têm no mostrador números romanos, Estes romanos são aqueles que matavam os cristãos, São, Ah, em quê vai ajudar aprender sobre esses assassinos, Precisamos saber para responder certo, Um bom motivo.

enquanto falam sinto um desconforto nos olhos. o botto está parado a frente do armário. fecho os olhos e os esfrego com vigor para tornar a abri-los e reparar nas formigas sentadas às cadeiras de fórmica verde, inquietas, as suas costas retorcidas. elas não parecem muito interessadas no que ele tem para lhes dizer. mantém as antenas em permanente movimento, O que mais querem de mim, dividi minha vida em amor católico romano e venenos para acabar com os formigueiros, meu Deus.

correm os boatos do horror da fumigação de venenos no formigueiro, Por que não posso escolher uma só razão, um só motivo para continuar a enganar essas gentes do formigueiro que não têm pressa, a lei moral circula as favelas e delimita seus modos de cismar o espírito e idéias, imaginam que pensam por si, coitados, são operárias a serviço da rainha e da colônia de penas, Chega, Morram. pressiona o atomizador inseticida, presunçoso boquiaberto. parece sorrir com tristeza



sentei no meio-fio esperando o ônibus, na sacola meu almoço líquido, no sapato o papelão de sola. vestia uma roupa de tecido fino, manchada de suor como se fosse cola. esfregava minhas mãos num sorriso tímido, pensava na minha vida e cantava a morte, destino que nos une e não adianta sorte, crescia minha angústia de fugir do norte, sonhava com o amor, desejos de mulher sozinha, brincava de dizer que a vida é minha, sabia que a verdade cedo ou tarde vinha, Professor, tá aqui a receita do médico, e agora? pergunta quem não enxerga um palmo escrito ou desenhado a sua frente, por analfabeto e cego. não sei como essa gente letrada não enxerga mais longe, há muito mais tempo ele faz careta quando tenta ler alguma palavrinha. está na cara a dor de quem não conhece as letras porque não vê o que lê e não lê o que vê, borracho que não voa. o cegado do olho, quer respostas, e querendo saber se ia conseguir os óculos, não se afasta do professor abá, um negro com dimensões acima das ordinárias e forte, muito forte, sorriso fácil de branco, num vozeirão alto e dominante no coro dos alunos e alunas, mas que se sente constrangido e estreito, não sabia o que dizer, Sim, mas ninguém te falou onde conseguir os óculos, arrisca. claro que tentava entender, brincando de cabra-cega e de adivinhação, passatempo com as vidas e humores, Eu fui no posto aqui da vila e eles marcaram o médico no hospital, fui até lá, ele me examinou e deu a receita, depois eu voltei. eis uma explicação bem simples, concedida de graça pelo cego, que enxerga quase nada das letras. sei lá, acho que tudo se complica demais na vida quando se avista muito. o outro cego não atinava, não lhe havia demasiada travessura, estava sem saber o que fazer. não queria repetir mais uma vez o não, evitava dizer que a resposta está por aí, em alguma seção de burocrata, sem ação, engavetada. tudo não poderia ser tão ruim. é ingênuo nas suas respostas, nas suas tentativas de nos alcançar esperança, ainda não descobriu que estamos escorados nos movimentos e nas motivações da desesperança nele, amparados na fé em nós mesmos, é somente o que temos, vivemos porque estamos vivos, Dá um tempo, preciso descobrir o que fazer, como conseguir teus óculos. é o máximo, não consegue dizer do medo e da probabilidade de não haver possibilidade. caminha alguns passos e se depara com o olhar do aluno de cabelos cortados, barba aparada, cheirando a perfume de lavanda e olhos brilhando na sua importância, coisas de coração, Ô cara, os teus óculos virão no dia de São Nunca, ninguém brinca na volta para casa. precisamos sobreviver, temos precisão de viver sobre as nossas dores e os seus humores, E aí, professor, sem resposta, queremos apenas uma replicação, Palavras, promessas e nada mais, grita outro alguém de costas, em tom de pilhéria, fazendo parecer brincadeira. coisas da oração, outro desabafo, mais gritos serão escutados, outra vez não serão ouvidos, somos o eco dos bandidos em nossos gemidos, sofremos diferente apesar dos gritos de dor serem os mesmos. nossos gemidos lhes parecem fingimento de excesso, coisas de mais pra tão pouco. o tempo há de cicatrizar as feridas e curar o cegamento, tudo a sete palmos de fundura. o desconfortável e o cego de olhos sem ler, o tonto e o respeitador a olhar o dedão do pé, o professor está em aflição e ele o olha na esperança da chuva que abençoa, um sente-se um sapo e não pode esconder a si mesmo no lago apequenado, o outro precisa dos óculos, da luz que se derrama e anuncia as letras e a lógica mágica de escrever e ler, Palavras, promessas e nada mais, grita outro alguém qualquer, a multidão dos seus alunos da desesperança. a realidade em pranto assiste ao súbito espanto que nos engole, e pronto, somos alimento das lágrimas que trazem o passado sem glórias e aleluias, Pra quê vai servir, eu já sei lê, nada mudou, não entendem porque ela não é parecidinha com as gostosonas da televisão, os chinelos são havaianas, não são falsos, mas o olhar de quem olha é de mentira, desleal



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