sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Teatro Pedagógico: ai-5

Parábolas de uma Professora 


ai-5


baitasar e paulo e marko





Consegui, brado para mim mesma, estou em minhas lembranças e no meu presente de sonhos e pesadelos, constatar a repetição de meus devaneios aflitivos no presente é demais

E o que tem tudo isso a ver conosco, as nossas escolas não estão cicladas?

este professor botto começa enervar a todos, no abrigo reparam que ele está diferente, mas ainda não sabem bem em quê. mais um vítima de si mesmo. ou se faz de vítima? notaram sem inveja que o seu tronco está ligado ao abdômen por uma cintura estreita, sua cabeça está livre e apoiada ao tronco por um pescoço fino e com antenas que se dobram ao meio. não parece ser carnívoro, espécies consideradas mais primitivas, mas apreciador de substâncias açucaradas e fungos. suas partes bucais parecem adaptadas para morder e ingerir alimentos líquidos. aparentemente, não é nômade, mas é somente isso, por enquanto, Por que não pede licença e vai para casa chorar, reclamar do cafezinho frio, da família das crianças, do alarido no pátio durante as aulas de educação física, intento de pedir como ato verbal de protesto

imagino que a solução para o seu caso é tomar chá verde, bem quentinho, namorar bem devagarinho, olhos nos olhos, passar nos recursos humanos e assinar a sua demissão, Se não gosta do que faz por que continua por aqui, pergunto desaforadamente em silêncio, apenas com a intenção de manter subjugados, em silêncio, a todos e todas que procuram a escola, ou a resposta se acha na incapacidade e medo de fazer um outro caminho de trabalho, uma outra profissão

Querido, até alguns anos, estes também eram nossos números, diria que em algumas escolas os números se apresentavam mais mortais. Saqueadores dos sonhos de milhares de alunos e alunas. Chegamos a ter índices de reprovação acima de cinqüenta, por vezes, sessenta ou setenta por cento.

A reprovação em nome do que e de quem?

Acredito que deva ter sido uma reprovação em nome do Deus da Tradição da Família e dos Bons Costumes, pois todos nos julgamos caridosos. Homens e mulheres de fé, cheios e transbordadas de um imenso sentimento de solidariedade, mas com muita saudade do poder imensurável que tínhamos nos momentos de aprovar ou reprovar, eis o nosso AI-5 que usávamos sem critérios e sem muito sofrer. Sem muito alarde.

Quantos jovens e velhos foram jogados ao mar de pés e mãos amarrados?

Amordaçados!

Tudo bem, estou sendo injusta, muitas vezes, vislumbrávamos uma leve sensação de injustiça sendo cometida e ficávamos chateadas um pouquinho, mas era só!

a lia continuava com seu discurso forte, avivando as memórias com a sua fala, ouvia-se o murmúrio do desconforto. as alunas de estágio do magistério presentes à reunião, apenas se olhavam sem entender muito essa história de reprovação e ai-5, também seria pedir muito que compreendessem essas siglas, quando muito estavam aqui, hoje, e amanhã ali, comandando suas tribos, impulsionados por tudo que por ora desaprendiam conosco. lamúrias, queixumes e ausências. aquelas em exercício de prática que por sorte eram escalados para o comando de professoras competentes e comprometidas, conseguiam ter uma visão menos turva do que as esperava mais adiante. compromisso. aquelas designadas para turmas com professoras menos competentes ou professores menos criativos e determinados em realizar suas tarefas de educador, logo apresentavam os sintomas dos mestres, pouco ou nenhum envolvimento com os alunos. gritos. palavras de ordem. e sempre que possível, passar a turma adiante. para que alguma outra se incumbisse das suas tarefas. não são todas, não são todos, mas são muitas e muitos. transmitiam poderes, jovens aprendizes delegadas. descompromisso. a escola também tem sua culpa nesta formação equivocada, quando os escala para jogar nos mais variados times, geralmente, de acordo com as biometrias, as faltas e os atrasos. o cobertor curto. digo, a bem da verdade, que quase nunca vi, esbarrei ou percebi seus professores orientadores de estágio perambulando pela escola. quem sabe, não venha a ser esta a primordial atribuição, já devem ser tantas, supervisionar os estágios com regularidade e constatar pessoalmente o que acontece. as variadas matizes que sempre tomam o rumo do humor dos seus atores e atrizes, por certo, não merecem a mesma atenção das outras tarefas que os mantém ocupados

É só mudar o patrão que tudo volta ao que era antes.

O patrão é o povo. Ele é que nos paga e tem o direito de exigir o nosso melhor...

O povo nada! Quem manda é o prefeito! Ou o governador do Estado! É básico!

Acemira, sei que é difícil, senão impossível, que tu entendas.

a acemira nunca perdeu e nunca perderá a oportunidade de empurrar o abismo para a beirada de todos no abrigo, se o suicida não vai até o despenhadeiro ela se encarrega de trazer as profundezas do caos, com um sorriso nos lábios, num gesto de oferecimento frio e sem humanidade. falta-lhe o amor, sobra-lhe o discurso despropositado que jura ser amor, mas eis o momento da sua razão desviada: não se envolve com os ciclos de aprendizagem. todos sabemos que mudando quem manda, para um mandador autoritário ou fingidor de interessado nos interesses do povo, voltamos ao ai-5, avaliações e reprovações como regra. estabelecer a busca da qualidade com a exclusão dos menos capazes de adaptar sua opinião aos interesses do momento. é o velho querendo substituir o novo que se estabeleceu a contragosto no fazer pedagógico, em um câmbio da luz desaforada, pela penumbra ressentida e ressequida, Que tal a gente se foder um pouco, tocando, descobrindo e desvelando a nós mesmas, desculpem o atrevimento. acho que exagero

Não existe uma teoria que favoreça a reprovação, esta é uma questão ideológica de formatação da sociedade que queremos. Nós, os professores e as professoras, pequenos burgueses e pequenas casadas burguesas, nunca faremos alguma revolução que nos desestabilize. A sociedade precisa nos reformular, começando pelas escolas que nos formam e formatam doutrinariamente reacionários e reacionárias!

Gurias vou me candidatar no concurso de “Professor do Ano”.

a intervenção da ofélia chegou a todos na surpresa do atrevimento, causando espanto e olhos de interrogação, brincadeira ou vaidade arrogante, inocência deliberada e útil ao caos das profundezas da alma e do espírito

O quê?!!!

Depois que inventaram os ciclos não duvido de mais nada!

acemira continuava atenta ao relógio, e aos discursos pedagógicos, e didaticamente expunha suas idéias, não quis o atalho oferecido por ofélia para outra direção

Pronto, agora somos astutos e resolvemos por antecipação quem reprova ou aprova, esse papo tá cansando.

eis a boa e inigualável cabayba de volta a discussão

Vão querer me fazer acreditar que nunca se ouviu ou se viu nenhum professor nos primeiros dias de aula declarando seu voto sobre quais alunos irão dar certo e quais alunos não irão conseguir acompanhar seu ritmo de ensinar, em um grande vaticínio pedagógico?

o mestre orientador samuel contribuindo com a possibilidade de esclarecer e revelar o seu pensar e o nosso fazer, muitas vezes encoberto pela solidão da sala de aula, na ignorância dos alunos e indiferença de todos que poderiam interferir, mas se escondem na ética do ‘não vou me meter no trabalho do colega’, e o trabalho do colega é conviver e educar crianças ou velhos e velhas. com certeza, se estivéssemos produzindo parafusos seríamos chamados a atenção para os desvios milimétricos da ferramenta, mas, afinal, são somente crianças com pequenos defeitos e desvios, se consertam com o tempo, pois tempo é o que não lhes falta, talvez lhes falte a família e o nosso interesse

E não esqueçam que toda profecia se realiza, nem que para isso tenhamos que dar uma ajudinha.

Professora Lia, temos o poder de construir o sucesso ou fracasso de nosso aluno. O que fazemos dele?

era o aguinaldo totalmente envolvido na discussão e disposto a pôr mais lenha como combustível desta fogueira polêmica



será que os professores ainda nos têm por máquinas copiadoras e que devemos agradecer o privilégio de os ter aqui, me pergunto, a escola, afinal, é um direito de todos, O que é de todos não alcança ninguém, nem as pessoas jovens ou velhas, oratória de adorno, ilusão cínica. lembro de outra noite, só faltou o prefeito, mas outros homens e as mulheres importantes da cidade nos visitaram para dizerem da sua satisfação de nos entregarem a escola noturna, pareciam quase tão decentes, tão alegres, disseram que era uma tal de aula inaugural. foi tudo muito bonito, só não entendi porque os professores deveriam fazer reuniões de estudos e planejamento em nossa primeira semana de aula. nos disseram que as lições com os professores só aconteceriam na outra semana, ficamos sem os tão esperados exercícios de copiar. nosso desejo imediato era entrar na sala de aula e escutar, decorar tudo em seus detalhes, estudar, jogar bola, mas teríamos que esperar ainda mais. claro, para quem já havia esperado tanto, talvez não fizesse mais diferença. só não conseguia entender porque e deixo escapar um breve e resignado suspiro, acredito que conseguimos a escola da noite, mas dentro do meu coração sei que ela não nos pertence

muitos são os alunos e alunas, professores e professoras, que desistem no meio do caminho, nada adianta educar a inteligência sem a compreensão do coração. instruir somente o corpo e a mente de pouco adianta sem a sabedoria da entrega no amor, amizade, justiça, humildade de reconhecer suas imperfeições e a força moral de buscar os caminhos da mudança de um em outro, escutando os outros e fazendo ouvir sua voz. não lembramos mais quantos colegas desistiram, houvera muito estudo para os professores e nenhum para nós, seus alunos e alunas. nem mesmo tem ou teve alguma importância, para aqueles homens e aquelas mulheres quase decentes, que houve quem desistisse das aulas, Haverá outros a desistirem durante o ano, dirá alguém ao desdém, empurrando para cima e puxando para baixo os ombros

avanço no meu tempo de recordar. Quanto mais subo as montanhas e sofro com o ar rarefeito mais para trás enxergo.

outra professora, mesma burragem, Que todos escrevam sobre o Natal. uma das meninas, a solteira, sem nenhum alarde ou alarido, apenas não fez a tal escrita. com os trabalhos já em suas mãos a professora deu pela falta daquela, e anunciou a iminência do perigo, A sua avaliação para o próximo ano depende, também, desta redação. indiferente, a mãe solteira deu de ombros. não sei se por causa da redação não feita, ou do famoso dar de ombros, ela continua na mesma turma, não avançou em aprovação. agora, por esses dias, perguntei porque ela não fez a composição natalícia, Não gosto do Natal, é triste, nada me anima a colocar o mesmo vestido, cada dia mais sujo e feio, moro sozinha, não tenho a quem olhar, dei meu filhinho, melhor assim, não preciso me enfeitar, não ganho presente, mas também não preciso dar nada, não tenho nada pra escrever da alegria dos outros, essa moça, a professora, que faça o que é melhor, ela estudou pra isso, pra saber fazer o melhor. disse-lhe que poderia ter escrito tudo isso que havia me dito. deu de ombros. lembro das pessoas amigas que conheço colocando seus filhos na frente da televisão, apenas para distração das crianças e sossego deles. pais e mães fogem daqueles seres pequeninos incansáveis, quase indestrutíveis em energia, e não sabem o que está acontecendo, nem sabem o que estão testemunhando, e sempre que deixam seus filhos nas ruas, os recebem de volta quando o corpo exige alimento ou está seco e quer água

sinceramente, não vejo muita diferença, nossas professoras nos mantinham ocupadas com quadros cheios de atividades, apagavam e já começavam na outra ponta, só havia tempo de escutar a pergunta, Já copiaram, eita encher o quadro de novo, não nos deixavam levantar um pouquinho. as professoras eram bons de escrever rápido no quadro, alguns de nós conseguiam copiar quase tudo, mas nem todos. pensava que essa gente que ensina tinha que ser mais calma. queria que saíssem com a gente para passear um pouco, cansa e dói ficar sentada o tempo todo, aluno bundante. eu não gostava quando enchiam o quadro. nossas professoras até eram boas, mas deveriam gritar menos, assustavam. gostava de alguns mais ou menos porque só davam exercícios e muitas frases escritas, de outros tinha medo porque eles queriam melhor, vencer sempre, gritavam e eu achava que ficava meio feio para elas que são professoras, falar assim, Será que os nossos professores não veem flores em nós, Não sei, me responde minha alma, mas de todo jeito vivem somente dentro de pesadelos, alguns parecem louquinhos para ficarem longe da gente, vivem saindo da aula, estão sempre perdendo algo que precisam buscar. achava muito ruim quando elas saiam da sala, todos ficavam uma bagunça. uma vez fui atrás da professora porque uns meninos estavam brigando. a encontrei tomando cafezinho e tagarelando, com a professora da turminha do andar de baixo, ficou zangado comigo e mandou que eu voltasse já para a sala, voltei, mas ela demorou mais um tempão. Quando retornou precisou dar muitos gritos histéricos, a turma não estava dando a mínima, na maior bagunça, lápis, papéis e cadernos pelo chão, giz esmagados, quadro todo riscado, uma das cortinas fora rasgada e a professora exigia aos berros que todos pagassem, Uma ova, eu disse que a culpa era dela e que eu não tinha dinheiro para pagar pelos erros dos outros, gritou que queria meu pai na escola, no dia seguinte, Meu pai já morreu, Então quero a tua mãe aqui, amanhã, Minha mãe já morreu, Querem saber, não aguento mais fazer parte desse circo grotesco, você não entra mais na minha aula sem os teus pais, gritou dessa maneira e saiu batendo com a porta. fiquei pensando comigo mesma como iria fazer meus pais virem até a escola, pois nunca mais os havia visto depois que morreram. depois, me chamaram na sala de uma professora com uma conversa mole, mas que repetiu as mesmas bobagens, no final de tudo isso, disseram que eu havia faltado com o respeito com a professora e que deveria ficar uns dias em casa pensando em melhorar minhas atitudes. resolvi não voltar mais à escola, pois achava que era aquela professora que tinha atitudes a melhorar. as minhas não estavam erradas, e assim aconteceu o meu primeiro tropeço escolar, pra mim a escola passou a ser um imenso casarão mal-assombrado


 
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