quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Teatro Pedagógico: general

Parábolas de uma Professora



general


baitasar e paulo e marko




quase termino outro cigarro. pelo movimento no abrigo a reunião vai começar, espero que tenhamos frutos, apesar da árvore estar muito envelhecida e continuar agarrada a vida por suas raízes imensas com tentáculos de astúcia

Pessoal, queriam me desculpar pelo atraso. Estou chegando do velório de uma colega que faleceu na madrugada de hoje.

este que fala é o professor aguinaldo, diretor da escola, nomeado secretamente pelo baixo clero de ‘general’. eu, particularmente o chamo de meretíssimo. procuro com o olhar o professor botto, não consigo encontrá-lo

Meu Deus! Quem foi que faleceu, Aguinaldo?

A colega Sara Sampaio que trabalhou aqui na escola, alguns anos atrás. Uma pessoa muito amiga, apesar de bastante amarga nos últimos anos, depois de descobrir a doença que iria acompanhá-la até hoje.

estamos chocadas, algumas lembram de momentos que se passaram, outras não se recordam de nada, outros não conheceram, mas fica no ar a promessa que cedo ou tarde nos alcança a todos. o fim da jornada. ninguém é esquecido, leva-se o mesmo e adeus. a escolha é simples: viver junto ou viver só. não sinto medo, mas sinto que a solidão desaba sobre o abrigo, parecemos nos acabando juntas, queria sentir que estamos vivendo ligadas umas com as outras, mas estamos a cada dia nos separando aos pouquinhos, sem sabermos quando será para valer. tudo sempre acaba e muda, não adianta fugir ou cegar

Colegas, a reunião já vai iniciar, vamos para a sala quatorze.

Por quê na sala quatorze, Aguinaldo?

a professora acemira lembra para o ‘general’ que as reuniões são sempre realizadas na sala treze. não tem solução, as pequenas coisas nos tiram a paz

Alguns alunos estão fazendo cartazes, preparando as atividades do próximo sábado. Vamos para a sala quatorze.

o general aguinaldo está parado, na porta da sala do abrigo, por instantes, parecem brilhar no seu peito medalhas da condecoração por sua bravura em duros combates nas salas de aula, corredores e pátio, pulando trincheiras, esquivando de projéteis em batalhas vencidas e perdidas no corpo-a-corpo, no disse-não-disse, mas jurando a verdade no disse-que-disse. escapa da ruína e da inoculação venenosa da mais variada fauna de peçonhas. um peçonhento que sobrevive as granadas que explodem a todo instante, decepando e mutilando do corpo parte dos sonhos de mudar. alguns perdem os braços, outras as pernas e muitos sucumbem quando passam pelos portões. o portal de uma outra dimensão

Eles não poderiam usar outra sala, tinha que ser a treze?

ofélia se resmunga enquanto recolhe seu material e se sai à reunião

É apenas nesta escola que aluno escolhe e manda.

continuamos doentes de imbecilidade ou ofélia é a cura? ela se funga e refunfa suas rusgas enquanto lança um olhar por sobre os óculos na busca de apoio para o seu soar de atacar. as parcerias não estavam atentas ou dissimulavam evitando um ataque tão aberto e frontal. preferem as escaramuças. as guerrilhas de atacar e recuar. ofélia guarda a trombeta e cessa o toque de corneta, haveria outras oportunidades

Gurias, quem sabe marcamos uma reunião para discutirmos a sala em que devemos fazer nossas reuniões? O engraçado é que não teríamos onde nos reunirmos. A única sala disponível e eficiente, superior a todas as demais, está em uso pelos alunos. Nenhuma outra é comparável.

o cínico professor adail já se dirigindo à reunião com um pequeno sorriso no olhar. convidando-as para descerem a terra dos comuns e cultivarem um pequeno jardim, antes que só sejamos saudade sem poesia, sem concretitude. ou quem sabe, aprendamos tocar violões e esqueçamos as zangas e as rotas de fuga

Professores e professoras, aguardo todos e todas... na sala quatorze.

anuncia o diretor nomeado ‘general’ pelos soldados. sai. atrás de si no abrigo um murmúrio de insatisfação tribal. parece que a discussão que nos importa é sobre a troca de sala da reunião. nem é tão só um detalhe, é mais um episódio insignificante, mas teve lugar num desses momentos absurdos de nosso cotidiano. e eu? calada! sobretudo, sentindo um imenso cansaço. um aborrecimento do vazio. faltam-me as forças, pois continuo dividida entre seguir meus sentimentos ou ir-me para a reunião. torno a ceder às obrigações do quotidiano e vou sentar-me na fórmica fria

A reunião vai começar?

Vaaaaaai!

gritar é uma das contradições do triunfo na sala de aula, vitória de pirro

Alguém viu a minha bolsa?

Nãoooooooo!

seca como uma árvore sem folhas, raiz ou frutos. querendo uma pedagogia que se aproxime dos desprezados e humilhados pelo poder. será que é querer muito? diálogos amuados me permanecem, não os consigo esquecer, libertá-los de mim, desprender-me destas memórias, Esse eu acho que a gente deve reprovar, se for o caso, É muito inteligente, mas faz somente o que quer e aprova, Temos que mostrar para ele que não é bem assim, Precisa de um pequeno susto, Um empurrão. reunião pedagógica e conselho de classe são um amuamento, poderiam ser momentos para salvar todas as almas, uma oração pedagógica amorosa competente, Quem sabe a gente dá um incentivo, Será que com o incentivo ela não piora, novamente, Ah, não sei, ela merece, Comigo ela só fez desaforo, Mas ela é ótima, Em quê, Essa aí, comigo já está reprovada, Pelo menos nós fizemos a nossa parte. sonâmbulos, educar e cuidar é nossa tarefa e compromisso, Esse melhorou até nas atitudes, mas vai reprovar de novo, Comigo não fez nada, não faz nada, Está maravilhosamente reprovado. o escravo só deseja ser livre para ser um senhor de escravos, mas um professor de cada coisa não é só um professor de cada coisa, precisa ser a professora  que educa e cuida. precisamos ser o contrário do liberto transformado no capataz do derramamento do sangue. olhando sacrifícios indiferentes, como se a distância pudesse nos salvar das gotas que respingam em nossos sapatos


não sou boazinha nem anjinho, apenas cansei da miudeza em que se vive, transparente, invisível, miserável, parecendo que é feliz. tudo pra acalmar as culpas das gentes vestidas dos pés a cabeça com meu sangue. nem continuo na cabeça de quem ensina a escrever e ler, muitas vezes, nem me pareço eu mesma, tal a boniteza da imaginação lembrada, encantamento, Isso, fui arrebatada por alguma coisa ou alguém, Algum espírito, Talvez, quem sabe, o meu que retorna depois de sair a passear no mundo, Se eu fosse aquilo ou isso, Mas morri de tiro em luta de corpo a corpo, sem festa, íntima de tão perto e de improviso do matador. um dia haverá de berrar o aluno inconformado, desviado do fio de prumo, e a aluna indiferente do que deveria ser, inclinada, torta da forma de régua, e, juntos, tapando sem luto, com sua sobrevida, aos encaramentos, as pescarias do espírito e as ordens dos construtores do muro, deixarão de ser a mercadoria. Inconformados de morrer, antes do dia

quem sou eu? uma aluna da eja

nossa primeira aula com computador e o professor Abá, O que ele estará pensando da gente, Será que vai nos deixá toca nessas coisas de computador, Aposto que não vai permitir, todo cuidado é pouco. eu sei que não é apenas curiosidade, estou ansiosa e com medo de fazer feio, Imagina se começo dando um pânico no computador e ele pifa, vou estragar junto, Calma, guria, vê se para de pensá besteira. não consigo conter minha imaginação nem a nossa vontade de já estarmos apertando aqueles botões todos, Será que ele sabe pedir socorro se estiver em perigo, Sei lá, só vou fazê o que o professor Abá mandá, É pra isso que ele é pago, E muito bem pago, Mandar em gente que não sabe nada, Vivem reclamando do salário, do pouco jeito que temos de aprendê, mas ensinar a gente de verdade, nada. olho e escuto os gemidos, pequena conferência árida, penso em todos nós e me desculpo, devia ter aprendido com vocês quando éramos crianças, mas nunca é tarde, A escola tá com cara enrugada. espero que além das rugas tenha tesão, E eu, amiudada por idéias velhas, por não ter aprendido tudo bem direitinho quando era menina e jovem, na idade certa. hoje, mulher e quem sabe um dia mãe, mais adiante avó, preciso estar aqui. no fundo, bem lá no fundo, por eu não ter aprendido tudo direitinho quando era menininha, venho atrás do tempo de precisar professor professorando, para me treinar de novo, Coitados, aja paciência, Será que o professor vai faze exame com a gente, Não sei, mas eles sempre fazem. enquanto vou me entendendo com minhas recentes amizades, os travadouros vêm se chegando, mancando das idéias, escondidos das letras

pedras escavocadas das catacumbas pelo marcatório de nomes desconhecidos, rolamos sem gritos umas sobre as outras, até que nos acomodamos depois de perdermos muitas lascas pelo caminho, Voltei, Sim, Tem lugar pra mim, Tem, Graças à Deus, obrigado, meu Deus. sorte nossa de gente amiudada ter ajuda tão poderosa. não tem gostosura isso de ficar olhando a partida sem volta, não gosto de dor repetida
 



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