quinta-feira, 1 de maio de 2014

05 – General Calçacurta

O Cadáver do Calçacurta – 3ª edição revisada
Sal grosso
baitasar
Não sei quem estou enganando, mas não são os mortos daqui. Uma cidade de jazidos e esquecidos. Acho mais banal e descomplicado manejar com esses mortos do que suportar os mortos da cidade dos vivos. Para esses mortos-vivos é preciso se mostrar como um pavão. As aparências que atraem lábios sorridentes e falsos. Na sua cerimônia de despedidas quero que os seus amigos vejam minha dedicação. Lastimem minha perda. Elogiem meu devotamento e empenho.
Ainda não vieram, mas virão.
Tudo flui.
Tudo que pertence ao mundo dos mortos está formado por uma matéria que se consome, ao mesmo tempo, está feita com um molde inacabável e imutável, conceitos imaginários dos espíritos que não podemos tocar. Só sentir. Anjos e demônios que flutuam em nossas pupilas.
Montar prontidão e guarda de honra sem receber ordens para essa missão, é um atrevimento mágico, lembranças românticas dos arquivos secretos da camaradagem. Ordens cumpridas sem perguntas. Ordens são ordens, o nosso lado é o lado dos mocinhos. Será que do outro lado sabem quem são os bandidos? Ou só cumprem ordens? Sem perguntas, em segredo, até que sobre as asas das balas voará o espírito do soldado rumo à verdadeira morada da alma. E se livrará do cárcere do corpo, satisfeito com sua vida entre as sombras. Aprendemos que as sombras são tudo, não vivemos as sombras como sombras
—        Nem tudo são sombras, soldado.
Não me virei, achei um tanto atrasada essa declaração. Continuei olhando pela porta aberta à escuridão. A morada das sombras, a segurança nacional, tiros, alvos, comunistas, honra, sacrifícios. O preço da paz é a eterna vigilância nas sombras. As coisas reais têm medo da escuridão e do desconhecido, não querem ver a imagem imperfeita dos monstros sombrios sem a maquiagem que pintam nossa forma e aparição. O criador nega a sua criatura com medo do preço que precisa pagar
—        É isso, senhor... mas o destino de todos é o armário, nem toda algazarra é indício de claridade.
Os soldados habitam uma caverna subterrânea, sentados de costas para a entrada da caverna. Pés e mãos amarrados, só podem olhar em direção à parede da caverna. Atrás deles, um muro alto e por trás do muro caminham seres que se parecem com comunistas. Uma fogueira faz com que se desenhe um teatro de sombras. Os soldados sentados em silêncio, na mesma posição, desde que nasceram, acreditam que as sombras são o inimigo

—        Não esqueça que os soldados comunistas têm a sua caverna...
Um dos soldados começa a perguntar-se de onde vêm todas as sombras da parede, enquanto tenta libertar-se. Finalmente, consegue soltar-se. Sai da caverna. Depois de esfregar os olhos, se dá conta da beleza de tudo. Pela primeira vez, vê que as sombras não são tudo. Vê o sol e compreende que é o sol que dá vida a todas as flores e animais da natureza, da mesma forma que podia ver as sombras na caverna através da fogueira. E volta à caverna, quer convencer os soldados que as imagens na parede não são reais, são sombras
—        A missão de qualquer soldado no mundo é localizar, identificar e neutralizar o inimigo.
O sono eterno. Observando o inimigo. Agentes secretos. Metralhadoras leves. Operação Peixe I. Arrependimentos arquivados. Nenhum sentido, nenhum destino. Indícios. Suspeitos. A Cigana escapou. A Transamazônica. Raimundos e Marias
—        O senhor conseguia dormir, General?
Voltei meus olhos de atenção para o defunto executor.  O sujeito atracava e prendia os elementos indicados. Insatisfeitos. Subversivos
—        Quase sempre. Principalmente, depois de comer piranha com refogado de feijão. — pensei que o jazido no ataúde tinha abaixado sua prontidão de ataque, tinha melhorado o humor, então continuei o meu pequeno atrevimento
—        E quando o senhor não dormia?
Gente ruim não dorme esperando oportunidades. Eu não durmo, o senhor não dormiu. Quem mais não dorme? Os arrependidos dormem? Acho que os perdoados conseguem dormir. E os fantasmas da Operação Papagaio
—        Soldado!
–         Sim senhor, General!

—        É como bater com a lâmina em ângulo reto na madeira, a planta devolve o golpe. Na véspera de alguma missão de aniquilamento dos esquerdistas, o sono sumia assombrado. Batia e voltava. Grandes filhos de putas! Gente perigosa, chupa-racha. São capazes das coisas mais terríveis.
O General foi um homem de abusos, isso está claro, mas exagerou e manchou o fardamento quando escolheu o lado do golpe, da porrada e dos desaparecimentos
—        Chupa-racha! Isso é traição! O pau ia cantar no seu lombo inconfidente se eu não estivesse no desconforto lastimável da imobilidade.
Não digo nada, sei que estou caminhando na beirada do precipício da insubordinação. Soldado não fala, só escuta. E obedece. É assim, e pronto. Do contrário vira sacanagem. Anarquia armada. É preciso ter intimidade com a nossa natureza
—        Não se luta contra a natureza. Soldado não obedece por conveniência, é um dever.
—        Eu sei, General.
Perco atenção naquela apostasia da humanidade, olho desconfiado para o imenso jardim à frente da câmara mortuária. Fixo as vistas, o corpo em prontidão. Afasto-me alguns passos e lembro-me do comandante, viro-me
—        Com licença, General.
—        Cuidado, soldado.
Vou até a porta, às vezes, rastejando, outras, esquivando das cadeiras. Chego ofegante e suando, a mão na cintura, o dedo retesado no gatilho. Nada. Apenas sombras nadam no pequeno lago como peixes fora d’água. Os cisnes da madrugada seguem se perdendo no berço do amanhecimento. Um pio da coruja. Lembro-me do homem morcego. Os sapos coaxando. As estrelas desmanchando no brilho da antemanhã. Sumindo. As aranhas e suas teias. Morro de medo das aranhas. Olho para trás, imagino o General levantando do sono eterno para me repreender
—        Chupa-racha, nosso trabalho é arrancar confissões, mas não confessamos nada. Jamais! Essa história de abrir o bico, dar com a língua nos dentes, não é para soldado de carreira treinado para resistir.
Volto para meu posto, em silêncio, como alguém que não perdeu o controle sobre o manejo da situação
—        O que foi soldado?
—        Exagero da vigilância.
Sentei. Esse capricho da concentração com o cuidado de guarda junto com a solidão do posto me deixou os nervos na flor da pele. A prudência do vigiamento e o dedo no gatilho. Precisava relaxar.
Fui até minha mochila e peguei uma vareta do incenso sal grosso. Sempre tenho o sal grosso. Com a chama do fósforo comecei a queimar aquela mistura de resina e bálsamos. Fiquei segurando a vareta, esqueci de colocar na mochila o suporte da vareta. Procurava uma escora, um sustentáculo. Enfiei a vareta entre os dedos entrelaçados do General, o arrimo daquela vida de ordens e contraordens
—        O chupa-racha tem medo da morte?
Pensei que aquela não era uma pergunta justa, afinal, entre nós era ele quem conhecia a obra-prima ignorada da vida, mesmo definhando da glória até a mentira, mas ainda pleno de audácia e frustração. Da morte, obra capital da vida, fora seu executor e executado. Um labrador que farejava comunistas de longe, jamais teve dúvidas
—        Não tenho medo, General. Mas não gosto do cheiro.
Recuei da minha curiosidade, reconhecia aquele cheiro da carne fria que se desmancha, perdida da energia que reunia aderência e intensidade
—        E você tem certeza que estou morto?
Respirei fundo o bálsamo que misturava com os cheiros da morte os prazeres da vida. Ele continuava acreditando no seu futuro depois da morte
—        Tenho, senhor. Uma infelicidade do destino, mas aconteceu.
A mirra continuava esparramando o bálsamo do alívio. Os cantos da sala dos mortos respiravam aliviados
—        Pois eu não tenho tanta certeza. Continuo na espreita. Será que morri, mesmo?
Assoprei as cinzas quentes da resina que caia sobre as mãos do General, ele tinha um caráter prestativo com a vida, como só aqueles que amam a morte podem ter
—        Claro, claro... o senhor morreu. O General é um morto encaixotado.

Não é bem como o senhor imaginou que seria, mas, diabos o levem, a vida precisa continuar. Outro tempo, menos medo. Talvez um dia, aqueles que habitam a caverna subterrânea descubram que as sombras não são a vida, nem a única coisa que existe. E descubram que as sombras são apenas cópias das coisas reais. E afinal, não matem o soldado que voltou.
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Leia também:
O Cadáver do Calçacurta – 3ª edição revisada / 04 - Um armário na parede

O Cadáver do Calçacurta – 3ª edição revisada / 06 - Marchando em círculos

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