sábado, 11 de maio de 2013

Sempre chega: a vez de sentá pra conversá


Ensaio 1B
baitasar
A avó descansou os olhos e abriu um vazio no coração de cada um dos seus amores: desocupou a vida. Mais um aviso aos inquilinos que não tem nada para sempre, mais dia menos dia chega a vez de sentar para conversar sobre a denúncia vazia, a quebra do contrato sem justificativa alguma. Não tem outro jeito de ser, há de chegar à vez de virar lembrança. A avó ensinou que as pessoas podem escolher as lembranças do desprezo ou bajulação que querem deixar, ela escolheu as lembranças do amor, mas não pode mudar os comentários da memória sobre os olhares da fábula. Até que tudo se perde em uma imensa poeira. Tudo vira pó ou barro.
Uma doce loucura de avó.
É assim, tudo que é sangue bom da avó carrega os seus conselhos de aviso, a sua boniteza de ser a vida que se precisa viver. Uma vida com os mistérios e a poesia do encantamento, com segredos e xingamentos, silêncios, e muitos gritos.
Ela estava ali, deitada, quieta, na cama dos seus amores, parecia que poderia abrir os olhos para comentar os lamentos, falar mal das cerimônias preparadas, As vista não carece de se enchê com tanta lamentação de desgosto, é preciso dizê da vida vivida e do contentamento, assim, com tanto soluço de choro, a avó vai parecê mais triste qui alegre, isso não é bão, pra modo de fazê a separação do espírito dessa carcaça velha... tô fazendo gosto de encontrá os mais velho.
As tiazinhas já tinham providenciado a lavação da avó, usaram panos e óleos, os cabelos brancos tomaram a forma de muitas tranças, embelezadas por contas coloridas. A cabeça da avó estava livre e os cabelos trançados. Cuidaram de não desmanchar o sorriso de amor e paciência na moldura da pele sem rugas. A avó estava fazendo a passagem do seu jeito, as filhas e as netas arrumavam um corpo desabitado, o jeito doce e harmonioso, por certo, rezava conversas de alegria com os mais velhos. Não tinha como saber, não tinha como duvidar.
Quando vestiram a avó com roupa sem a cor da alegria, um pano grosso e sem graça, fiz reclamação e disse que a avó tinha que ter vestidura fúnebre com mais boniteza. Ela é muito vaidosa.
A tia Vanda respondeu com voz de alicerce
—        É as ordens da nêga Laetitia, avó da avó da mãezinha. Esse jeito simples de vesti é pra modo do Capitão não se perdê de encontrá a avó. Ela qué sê vestida pra sê achada.
Depois, sentou na cadeira de balanço, me pegou no colo, sorriu com a latência dos lábios carnudos e chorou a lamentação com as vistas. Subi meu olhar até a tia, depois me balancei no seu pescoço, até pertinho da sua lamentação, então, consegui beijar as águas dos olhos, Tia, os espíritos não podem ver o modo de vestir da avó, ela desocupou da vida e desse corpo, são os olhos de quem fica que veem a avó vestida com tristeza, queria mais contentamentos na apresentação de despedida da avó
—        Ah, fio sobrinho, a minha vista só enxerga tempo muito atrás, as minha lembrança tem cantoria, aroma da feijoada, cheiro da boca, gosto do beijo, as vista doce, as mão carinhosa, os cabelo arrumado, perfumada, o tempo que só volta nas minha vista. A mãezinha agora não é mais nossa, ela já fez despedida antes de perdê o último suspiro.
Queria contentar a tia, mas não conseguia manter a secura da vista desarmada. Queria a quentura daquele abraço que só as mães sabem exagerar. Coloquei minha cabeça em seu peito. Fechei os olhos, precisava descansar as vistas de vê a avó morta. Sentia os dedos da Vanda enfiados no meu lugar de orgulho: no meu cabelo duro. Escutava a voz sossegada da tia Vanda
—        Neinho, ocê lembra da vez que tu mais o Tigão, que o Espírito dos Mais Velhos tenham o moleque junto e protegido, deram fumo de corda que não era o fumo de fumá da mãe?
Sorri com as vistas, mas a lembrança do Tigão me fez mais quêdo, as duas tristezas se juntaram. Era muita saudade junta, muita pergunta sem resposta. O avô não sabia, nem nunca confirmou que sabia, mas tinha desconfiança que quando terminô... terminou. A avó tinha cogitativo de mais confiança, Os espírito se junta depois da separação das carcaça, senta no chão, na volta da fogueira, uns esfrega na mão, outros toma um licor da cachaça, tem os qui caminha e faz reboo com os pé, outros só arrasta daqui pra lá, e de volta, sem zunideira, os em pé tá esperando a vez de sentá pra conversá. Num tem pressa nem lamentação, chegô o tempo das providência.
Eu não sabia, mas gosto de pensar que o Tigão está no colo da avó, levando xingamento por causa do pouco causo que deu aos aconselhamentos da preta velha, e nos pés da avó tá guardado o meu lugar de ouvir
—        Lembra de ouvi a avó, no outro dia, muito pasmada, chamá os dois moleque?
Concordei com a cabeça, eu e o Tigão parecíamos dois guris cagados de medo.
A tia sabe como a avó sabia tudo e muito mais, Meu fio neto, senta aqui nos pé da avó e escuta com atenção: sabê escutá é de muita sabedoria e dá mais mão de autoridade qui sabê falá, queria conseguir lembrar tudo que a avó disse, mas as lembranças vão ficando embaraçadas com a tristeza, até parece que uma atrapalha a outra. A avó gostava de tá sentada nessa cadeira, fazendo balanço, eu gostava de saber que a avó ficava sentada se balançando
—        Quando me contô essa história do fumo de corda, se ria de tê tosse até engasgá, só de lembrá chorava de tanto ri, Minha Vandinha, tudo qui é gente tinha qui fumá o baseado desse fumo, uma vez, uma outra vez, e rí da própria alucinação, da imbecilidade. Minha fia, pode creditá, esse mundo ia sê outro.
Tia, eu e o Tigão passamos um tempo danado caminhando levinho, ficando escondidos nas frestas, se a gente soubesse da aprovação da avó, não tinha tanta confusão, até arrumava mais daquela corda
—        Isso prova que ocês não tinha conhecimento da avó de ocês, tê medo não é conhecê.
Passei a noite no aconchego do colo de tia. A luz amarelada sobre a cabeceira da cama era a única luz que iluminava, testemunha da vida da avó que sempre lhe foi agradecida, Essa luz do tipo fusquifusqui, só mostra o qui é preciso mostrá.
Nos primeiros lamentos do dia, abri os olhos devagarinho, esticado num incontrolável bocejo, uma das mãos à boca, a outra esfregava os olhos, deslembrei que a avó tinha desocupado a vida, até que o cheiro da morte me entrou e revelou o homem que eu era, o meu pertencimento, Bom dia, minha tia, o calor do colo me enrolou na preguiça
—        Bom dia, meu fio.
A penumbra no quarto da avó parecia mais assombreada que iluminação disfarçada em velório, a luz amarelada se mostrava mais cansada com a missão de vigiar defunto, eu estava exausto, cheguei a querer que aquelas despedidas acabassem logo. No instante seguinte, precisei pedir perdão à avó, ela havia de entender, E a avó? perguntei como se estivesse recém chegado pra visita da cortesia
—        Já se foi...
Pra onde? desculpe tia, eu sei que a pergunta é chata e boba, como a tia havia de saber
—        Se foi pro lugá de morá com sua gente, o seu Capitão.
A tia não se explica de uma vez só, parece que espera a pergunta pra responder quase nada, não é justo deixar a solução escondida, logo a tia, que nunca foi de obedecer a avó
—        Não diz bobagem, moleque. Sua tia esquecia de obedecê, mas nem sempre, vez que outra, isso é bem diferente de sê rebelão. O meu atrevimento nunca foi com sua avó, sempre foi com minha mãe.
Então, por que não diz o que aconteceu? Onde tá a avó? A cama da avó esvaziou
—        Ganhô encantamento quando nouteceu, ou foi alimentá a vida na outra vida, ou não quis tropeçá no amanhecê, ou foi embora com o Capitão. Ocê escolhe...
O neinho prefere acreditar que o amor daqueles dois conseguiu se combinar e ressuscitou. Onde já se viu, levantar depois de morta? A avó não devia tá no seu ajuizamento das ideias. O neinho devia ter ficado vigiando a noite.
—        Ocê não creditô no acreditá da sua avó, nem lembra o que sonhô, vive mais triste que a própria dô. Gosto de sonhá que o amô chego de vez pra avó.
Como a gente faz um enterro sem a avó presente? Os tiuzin tão esperando pra vê a avó de corpo pra visitação, não sei explicar o acontecido
—        Não precisa enterrá o que não morreu, os irmão sabia que a mãezinha não ia ficá. O que ela queria deixá, ela deixô: as lembrança das palavra. Pediu pra ocê não esquecê que a vida vai vivê, não vai fazê ocê sonhá, o sonho é d’ocê, não é da vida.
Pareceu que levei uma surra, queria voltá pra dormí e sonhá da vida.

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