quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Sarau da diamba


Ensaio 16
baitasar
Enquanto o anão de nome Davi procurava as chaves da casa, entre resmungos e ofensas, pra si mesmo, Sèzar, que já se esvaziava dos efeitos devastadores da diamba, lançou um olhar curioso desconfiado à fachada descascada, a casa do seu novo amigo anão. Era possível perceber que os donos ou inquilinos da casa, com o passar dos anos e usos que fizeram dela, se preocuparam com a aparência cansada e o desbotamento das paredes, mas a cada nova pintura, o pintor, fosse quem fosse, não se dava o trabalho de retirar a tintura antiga, passava tinta nova por cima da velha, e as camadas descascadas ficavam como anotações do tempo, o velho e o novo que sempre vem, o mesmo jeito diferente, a casca dura como os anéis de crescimento das árvores.
Hoje, suas cascas de embelezamento estão descascadas, acabam por exumar o passado, revelando o véu das tintas que escondia o passado de muitas cores, até a medula dos alicerces. Vida extraordinária dessa casa que aloja vidas — Achei!
Por cima da túnica de tintas, uma cobertura azul, por certo, a última tentativa de reencontrar o vigor do passado, sem muita convicção, os tempos são outros, não são tempos de aspiração sutil dos domínios profundos dos espíritos, são tempos que exigem a confiança absurda e cega na devoção à fé — As chaves...
Logo abaixo da epiderme azulada descolorida e desbotada, se pode distinguir o amarelo. A cor amarela, possivelmente, se associa há um período de resplendor da casa, brilho, jovialidade, a alegria da sabedoria, através da razão e da lógica — ... encontrei as minhas chaves...
A camada seguinte, logo abaixo da amarela, é vermelha.
O vermelho pode indicar que os moradores estivessem procurando vida nova, sinalizando reinícios inéditos. Sèzar diminuiu a liberdade dos pensamentos ao perceber uma pequena mancha de tinta verde, O verde também faz parte da história destas paredes, pensou, enquanto imaginava as pessoas procurando a sua segurança e proteção: a liberdade, uma casa com harmonia e equilíbrio no mato, Mas não começou assim, está desconfiado que lhe falta a instalação, o tempo da fundação, pega o seu canivete - presente da Adelaide – e raspa aquela pequena amostra de tinta verde, não estava errado, viu surgir a cor laranja, que, por certo, deu bênçãos à vida, confiança e coragem, em tempos autoritários, esmagadores, desumanos — Vamos entrar... encontrou alguma coisa?
—        Apenas imaginando o passado das coisas. — aquelas paredes descascadas foram fundantes da tintometria, ciência inventada pelos resquícios da diamba no Sèzar, estimava a vida e a morte, a compra e a venda daquelas paredes, como as impressões digitais das suas cascas, vestígios das vidas sumidas, descascadas até o osso.
O anão enfiou a primeira chave na fechadura que fica na altura dos joelhos, depois ergueu-se na ponta dos pés e destravou a do meio — Pronto, meu amigo, aqui não tenho jardins, nem recuos, o amigo está entrando na casa erguida desde a escravidão dos pretos – era como ele imaginava pela quantidade de pele descascada
        O primeiro morador foi um capitão-do-mato, Nêgo Bagão, um preto liberto que vivia de caçar os pretos que sonhavam com a liberdade, era emprego do gosto dos brancos que tinham comprado os braços e as pernas dos pretos desembarcados, mas não conseguiam esfolar as assombrações das saudades, os pretos escravizados não deixavam das vidas de antes das correntes: os brancos tinham medo do incêndio que o preto fujão podia acender.
—        O preto caçando o preto desertor.
—        Ele sabia da sua importância de serventia para os brancos, nem tinha ilusão de boa vizinhança com os escravizados. Foi o começo do trágico serviço de pulícia que fez o preto emprisionar o preto, o disparo de estreia de pulícia na escravidão, que não teve mais fim.
Desde que o dinheiro foi inventado, investimento feito não pode virar prejuízo — Esse capitão-do-mato... como é mesmo o nome...
—        Nêgo Bagão.
—        Isso... esse Nêgo Bagão deve ter se tornado figura das mais importantes: cuidar das seguranças dos brancos no trato com os fujões.
—        Fazia juízo do fato e o decidido tava decidido. Foi um jeito de sobreviver com algum lucro.
—        E o prejuízo?
—        O jeito era entregar à desgraça alguns pretos e não perder os dedos. Afinal, para comprar mais anéis, bastava a chibata no lombo dos pretos.
—        Então, foi sujeito de fama.
—        A reputação pública de caçador do Nêgo Bagão vinha do serviço bem executado, conhecia como poucos a cabeça do fujão, desvendava os atalhos do mato.
—        Quantas histórias aqui dentro...
—        E lá fora... meu amigo, a notoriedade do Nêgo Bagão durou até a consciência negra enfrentar o patrão.
O visitador branco fez uma última olhação, antes de entrar nas suas entranhas históricas, ficou com a impressão desconfiada, um sexto sentido feminino, sensibilidade, resquícios da diamba, ou mania de procurar ver o que não aparece porque desapareceu, que a rua se juntou ao calçamento da calçada, quando a casa tinha a cor vermelha, depois, a calçada se grudou na casa, acabando com os recuos de jardins, no tempo da casa amarela. A rua e a calçada se alargavam sem muitas perguntas, comeram o jardim de mato, encostaram na única porta e janela de vista com a frente — É uma porta?
—        O quê?
—        Ali, ao lado, enterrada até a metade...
—        A entrada da senzala pra preto fujão que ficava cadeiado no porão, até acalmar. Tá sem uso faz um bom tempo... o portão do inferno. Mas, meu amigo, vamos entrar.
O bem-estar invisível da diamba, sensação alucinógena da iluminação, havia sumido, Sèzar voltava ao mundo comum da vida e da morte, e, por um breve instante, soube que estava entrando numa armadilha — Preta! Chegamos, vista alguma coisinha!
Com cada um é um jeito diferente, o Sèzar, quando evapora toda a diamba, acredita que está sendo perseguido. Fica nervoso, desconfiado, Merda, deve ser algum código: chegou mais um otário; saia de um pensamento para outro de um jeito letárgico, Estou encarcerado!
Um cabeludo desgovernado, um cometa em rota de colisão, perdido dos beijos e mãos da sua Adelaide – engraçada e triste essa mania das pessoas ficarem donas umas das outras - enrolado na fumaça da diamba. Sentou no chão e chorou, Eu paro, meu amor, a diamba não me domina, apenas pra relaxar... pra escrever.
O anão fechou a porta, uma penumbra cinzenta se enrolou nos pés do Sèzar. Um túnel. Apertou os olhos com força, baixou a cortina dos olhos se espremendo, assim acha que enxerga com mais clareza no escuro — Levante-se, meu amigo.
O anão tinha a voz de um anjo, mas não podia ser um anjo, nunca havia imaginado um anjo anão, nunca haviam imaginado um anjo preto. Nas aulas do catequizador, tempo anterior da primeira comunhão - estudo dos pré-requisitos da comunhão, abandonou os estudos assim que recebeu o boletim de aprovação: a hóstia, mas não pode deixar de visitas periódicas em casamentos, falecimentos, batizados... momentos de reunião familiar – jamais foi cogitado pelo catequista que anões e pretos fizessem parte do mundo angelical
—        Preta! Venha cá, dê um jeito de cumprimentar o meu amigo...

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Leia também:
Ensaio 15 - Sarau do anão 
Ensaio 17 - Sarau na névoa sinuosa

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