domingo, 2 de setembro de 2012

Ordens são ordens

Becos sem saída - O velho ressuscitado!

I
baitasar


Nenhum deus é ingênuo, todos buscam honra e glória, não têm comiseração, a sua compaixão é egoísta e paciente com as medalhas por seu bom comportamento, frequentemente corrompem os bons costumes, não enxergam bem, volta e meia cometem erros. São funcionários burocráticos do privado e do público com a ambição do poder, têm ouvidos por tudo e olhos nas costas. Desconfiam do amor e das pessoas benfeitoras que parecem cansadas com as tradições e os fazem correr riscos desnecessários. Os deuses não leem, nem sabem falar de livros. Não contravêm, querem ser marcados por suas opiniões convenientes e oportunas. Até parece que têm opiniões próprias
—        Usam o quê? — nenhum deus é ingênuo, busca honra e glória para si, não quer piedade nem condolência. Mas é a impaciência humana que faz enjaular, separar, tomar pela doma a alma - se a alma existe - a dignidade, se a dignidade existe. Eles oferecem medalhas pelo bom comportamento. A jaula foi invenção máxima dos deuses do dinheiro, o dinheiro é real, não tem medo de si mesmo, sente orgulho: ninguém sobrevive ao dinheiro. Ele é divino.
O domador de animais, o dono do dinheiro, é a poeira invisível que corrompe os costumes. O bugre pede pela preta, ela pede pelo bugre. Mas não convencem as tradições, nem acalmam as atitudes que sempre foram assim com seus ruídos e movimentos de ignorância. O enjaulador só existe na batalha do inferno, precisa do inferno: a aridez dos costumes não o consome. E pede que o povo acorde — Acordem! — esqueceu que já matou todos.
Esse enjaulador mancava e não enxergava tão bem, mas mantinha um sorriso afável de serviçal e manhoso, sem traços de descaramento. O manco domador se tornou um funcionário regulado pela burocracia com a ambição do poder. Nunca foi o burocrata miserável, aquele que tem ouvidos por tudo e zela pelos corpos que as intrigas sabem resfriar, mantém o pé no pescoço das suas vítimas e aliados. E jamais se viu nele algum esforço para parecer um mancador normal. Seu maior empenho pessoal foi decidir sentar - nas escondidas - para mijar: acabou com a luta sobre o assento molhado a esmo. Acabaram-se as discussões filosóficas com as mães, esposas e amantes. Desde então, um momento de segredo às portas fechadas, segurança nacional, o homem desacostumava seus homens de fazer o serviço em pé. Obrigou os subordinados a seguirem sua doutrina. Jamais em pé: nem segurando com as mãos. Sempre sentado. Homem que é homem não fica em pé, mas agachado. As tropas assim eram menos do circo e seu povo, e mais do manco domador e às suas vontades — Esse é meu circo de mata-cachorros.  — ele não usava o vaso de assento, usava o lavatório em pé, as escondidas. Seus deuses malditos eram todos homens fortes, bonitos, mulheres corpulentas, preparadas para o nascimento de homens corpulentos e mulheres aparelhadas, aprontados no tempo para a imposição das urgências.  Recriar deuses no poder: em seu círculo íntimo de poder, repetia a exaustão
— Homens não amavam os homens, mulheres não amavam as mulheres, homens não amavam as mulheres, a tarefa de amar aos homens era das mulheres. — não têm vida própria, é recriado por medos. E as pessoas benfeitoras parecem cansadas de saber das atrocidades e maldades. Ignoram distraídas com as próprias desventuras. Acho que engordaram demais. Escondidas. O silêncio dos ignorantes com dinheiro prefere amansar a pimenta com açucaradas colheres de sopa. Os deixemos assim, por enquanto, entretidos com o relaxamento da doçaria.
Imagino as almas marcadas pelos signos da escrita, autografando e causando pensamentos, arrasando e dinamitando, opondo-se com ideias, opiniões próprias, num debate de intenções e imagens, sonhos bons e ruins, ilusões e desilusões. Tudo nem é tão bom, nem o nada é tão ruim. O nada é uma atividade que tem muito ou tudo a ver com a subjetividade do leitor, não só com o que o leitor sabe, senão também, com o que ele é existindo, enquanto uma experiência, formação. O leitor é a leitura como algo que nos forma ou deforma, que nos constitui e nos desafia naquilo que somos, ou que pensamos ser... desejamos. O nada e a leitura, portanto, não é só um passatempo, um mecanismo para fugir do mundo real e chegar ao porto do mundo não real, não se reduz a um meio para adquirir conhecimentos, mas é algo que nos faz ver o que somos. Seria uma relação entre alguém que lê e seu outro, o texto, a pessoa, a situação, o objeto, ou seja, a relação com o texto. Esta relação tem uma condição essencial, que não seja de apropriação senão de escuta. Na escuta se está disposto a ouvir o que não se sabe, o que não se quer, o que não se necessita, a perder o pé, a deixar-se arrastar por aquilo que vem ao nosso encontro, quando escuto me aproximo de mim mesmo, no exato instante que me deixo avizinhar do outro no seu texto, na sua fala e nas suas intenções.
As leitoras das prateleiras. Vou para os rejeitados. Sou como mercadoria. Negam minha pretensão de passar às mãos restituídas de outra consciência, elas nem me pedem licença, vivem uma aflição excessiva. Chegaram com o propósito de retirar os descartáveis, fazer um inventário de salvação, manter os maus longe de si e dos demais. E assim, começa o bem me quer mal me quer. Não somos nada além de livros recostados uns aos outros. A prontidão não é apenas um sinal de alerta dos soldados, mas o nosso jeito de repetir que isso, nunca mais, nunca mais. Penso em empreender alguma das fugas narradas em mim. Estou emburrado. Na verdade, não estou pronto, mas espicho o olhar até a jaula mais próxima. O meu conteúdo de denúncias sem figuras e cores não atraem. Estou envelhecido. Retorno à minha urgência. Acabou o exame da minha substância, e não se comece a dizer que por presunção ou por desvio me volto sobre mim mesmo. Decretam o final do meu ciclo de vida. Uma senhora me detém em suas mãos e me lê em voz alta
─         Brasil Nunca Mais. — ensaia me abrir para ler, mas fica apenas a volver em meias voltas minhas folhas, desinteressada, quase escorrego e me vou ao chão — Isso já acabou, quem não morreu já foi anistiado. — sou jogado na pilha dos descartes, abandonado como tantos outros infames em cova rasa: descartados do acervo. Minhas páginas se alvoroçam. O denunciado em mim está tão perto e as senhoras me julgam desusado. A vida não se faz obsoleta. As histórias das fugas se tornaram antiquadas. Não entendo esse desejo por uma amnésia coletiva. O espanto e a dor vivida são transformados em doença da memória. Mas a agonia ainda existe, e deveria envolver todos. Volto à história daqueles dias de chumbo
─         Atenção, soldados! Sentido!
As suas vozes pequenas ainda doem e podem ser ouvidas — Mamãe! Papai! Vovó! Por favor, não batam na mamãe!
—        Larguem o papai! — depois o choro, o silêncio e abandono, foram deixadas para trás. O tempo não tem como ser medido, nunca tiveram a certeza que os homens maus não voltariam. Os gêmeos saíram do galinheiro e recolheram as três crianças. Todos choravam abraçados na sala televisiva. No escuro. Dormiram agarrados uns ao outros. Era a esperança que aqueles homens os trariam de volta. Nunca voltaram.
No meio da noite foram acordados pelos passos do medo. Era alguém camuflado, quase em silêncio, respirava excitado, acelerado como um bêbado — O que vocês fazem aqui?
—        Uns homens maus levaram eles. — É verdade, Supimpa.
—        Calma, crianças... um por vez.
—        Deixa que eu conto...
—        Ta bem, ta bem, me conta — o detalhamento das crianças fez doer a traição. Sabia que precisava agir rápido. O tempo fazia com que tudo ficasse cada vez mais longe de solução. Vaporoso. Mas primeiro levar as crianças para lugar seguro. O apito do guarda da noite o fez agir às pressas. Primeiro colocar as crianças em segurança da polícia. As tratativas e preparativos foram rápidos. Quando amanheceu saiu atrás do delegado Calçacurta. Foi até sua casa. Clara o recebe em roupas de dormir que se deixa atravessar pela luz. Tem um acanhado sorriso nos lábios. Ajeita os cabelos de maneira descuidada, mas sem aborrecimento. Repete que o marido fazia bons dias não lhe aparecia, no fim, concede um levantar conformado de ombros
—        Não vai entrar?
—        Hoje, não vai dar.
—        Que pena, nós poderíamos recomeçar onde paramos.
—        Tenho urgências de falar com o teu marido. — a mulher recomenda que ao avistar o sumido lhe pedisse notícias. Não tinha muitas ideias para encontrar o seu mentor. Decidiu por ir até a Adega. No caminho se perguntava o que haveria de ter acontecido. As coisas estavam de pernas para o ar. Nada faziam sentido. Aquela manhã não parecia existir. Tudo era um pesadelo, ele estava sendo torturado. Não saber, não entender.
Quando chegou aos portões da Adega foi impedido de entrar pelas sombras. Ali era o fim da linha que engolia em fornos, fuzilaria ou nas águas dos sete mares. Campo de concentração e extermínio: organizados na clandestinidade, onde a morte é a única possibilidade — O que está acontecendo?
—        Não sei, apenas ordens: ordens são ordens.
—        Porra meu, eu preciso entrar!
—        Não vai dar. — o aprendiz de policial Supimpa tenta na medida da sua força entrar. É atravessado por empurrões, dominado e levado ao porão. Entrou. Pronto, tinha rompido com o mundo exterior, se tornou mais um desaparecido. Podia sentir a presença da morte. Viu sua gente amassada pela humilhação e seduzida pelo medo. Ali as palavras eram rasgadas da carne. Testemunhou Manualdo assinar papéis que nem mesmo lhe deixaram ler. Mas ele sabia que eram coisas terríveis com respeito ao torturado, a torturada, pessoas que deixaram de serem pessoas: apontavam a formação de grupos e de atividades clandestinas. A irmã assinou papéis, contrato de trabalho em que se comprometia a colaborar com os órgãos de segurança em troca de sua liberdade e de dinheiro. Em um destes papéis - lido em sua presença depois de assinado - ela declarava que seu irmão Lamparina era ligado a grupos revolucionários. Ela estava reduzida a uma isca. Obedecia como uma máquina, sem raciocínio e sem vontade própria. Filmaram a mocinha de calcinha e sutiã para mostrar que as marcas em seu corpo eram conseqüências de um possível atropelamento. Tudo tão infantil, tão amador... e a amnésia coletiva acredita — Por que estão fazendo isso com a minha gente?
—        Caíram porque são subversivos.
—        Isso é alguma piada?
—        Coisa séria.
—        Da onde tiraram isso?
—        Investigação.
—        Minha mãe odeia os comunistas!
—        Tudo disfarce. — foi levado para a sala do delegado Calçacurta. Estava escoltado por três homens que não lhe dirigiam palavras nem olhares, enquanto subiam as escadas até o consultório no primeiro andar. Encontrou o mentor sentado, atrás de sua mesa nua de papéis, lhe ocorreu que aquele Calçacurta não sabia ler, mas não, conheceu homens e mulheres analfabetos vestidos de uma imensa humanidade, esse se despiu de qualquer lembrança de humanidade — Delegado, o que está acontecendo?
—        Isso rapaz, não está no meu costume. — o aprendiz percebeu que o mestre estava lavando as mãos. Descobria que estava sozinho, naquela simulação
—        Começou com esse tal de Manualdo.
—        O que ele fez?
—        Se meteu com gente da pesada.
—        O quê?
—        Receptou objeto que estamos monitorando. E tem mais, ele confessou que começou aquela coisa de esburacar a praça. — começava a sentir o medo do jogo que lhe escapava das mãos
—        E daí?
—        E daí, nada. Depois da coisa se movimentar e abrir as portas do inferno, você sabe como funciona... não tem volta.
—        E a Maria Memória e o Ogum? — o delegado faz gesto de impaciência
—        Esses a gente não tem aqui.
—        Ei, ei, sem enrolação. E a minha mãe e o meu pai?
—        Opa, opa... o seu pai é outro.
—        É, mas foi esse cara o meu pai quando o Virgílio se mandou.
—        De qualquer jeito, eles não estão com a gente.
—        História mal contada. — tem uma coisa que o Supimpa aprendeu além de socar, o delegado Calçacurta mente, mas não vai admitir. Muda o rumo da conversa
—        E a minha irmã e o Manualdo?
—        O que têm eles?
—        Quando vão sair?
—        Esses a gente precisa que eles assinem alguns papéis.
—        O que eles precisam assinar?
—        Nada demais, você sabe como é... vai depender deles.
—        Deixa comigo, eu os convenço a assinar.
—        Não dá, hoje faço acompanhamento da falação de outros presos. — ele sabe que os papéis já foram assinados, agora precisam de tempo para que as feridas cicatrizem. A conversa estava encerrada.

________________________

Leia também: 
37 - Troco por fumo e cachaça 

39 - Os joelhos dobrados sobre a terra

Nenhum comentário:

Postar um comentário