segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Essa coisa de cornos na testa não me cai bem

Becos sem saída - Hálito de Pólvora



II
baitasar
—        De quanto você precisa pra se feliz?
—        Não entendi...
—        De quanta vingança você precisa pra ser feliz?
Pensou que chegara o seu dia de apanhar e desaparecer como o papai. Afinal, tudo sempre desaparece, até o pesadelo que desvirava verdade. Parou sob a ombreira da porta, olhou para os lados e não atinava com uma rota de fuga segura. Qualquer que fosse o caminho ele seria denunciado — Moço, todos são uns putos sem-vergonha!
—        Tá, tá bem, pode me devolver?
—        O quê?
—        A armação... — queria o que foi seu de volta e partir dali, esquecer dali, viver e morrer longe dali, a armação, a armação
—        Ih, toma lá seu moço.
Pensou em reclamar que não era um canalha, apenas dedo-duro. Sente cólicas, queria encolher as pernas até se parecer um fruto do girassol. Queria durar o tempo do castigo, e pronto, ficar livre. Não conseguia livrança daquele descontentamento constante, os vestígios de um lembramento oculto, restos de memória escondida, vêm e vão ao sabor dos ventos. Não tinha vitórias para festejar nem para chorar. Parou e tomou um fôlego, uma folga de coragem, para seguir ouvindo a prece do danado
—        Moço, essa sua armação de ver não tem nada que já não se viu. O mundo elege o que quer ver, é uma escolha. — ninguém percebeu sua dor de espanto. Encheu sua paciência de escutar desculpas. Tão pequenino. Assustado. As mulheres gritando. O papai escondido. Não tinham mulheres. Não havia ninguém. No tempo da imaginação se inventa outra realidade, mas aqueles três seguem entrando em seu rumo de alinhamento. O jogo dos bochas já estava parado. E o macarrão desaqueceu de vez. O Socador, o Desconfiado e o Manco iam à direção da única saída. Que lhe peçam licença e ele arreda o pé para o lado. Talvez. Correr ele não corre — Sou um feto macho verdadeiro. — mas ele não sabe se reconhecerão colhões de verdade, caso nunca tenham encontrado um. Param. Malditos. Estão na distância de um bafejo dos pulmões. Está na dúvida se o reconheceram dos pesadelos — Onde está teu pai?
—        Quem?
—        Teu pai, o come-come da mãezinha e da vizinha.
—        Não sei. — o Socador o ergue pelo pescoço, os pés se afastam do chão e o hálito de pólvora invade a garganta. Aproxima a voz do ouvido. Sente vontade de urinar naquela cara repugnante e deformada, mas apenas sente a mijada que não deu escorrendo. Escapa pernas abaixo, pelo menos que aquela mijada lhe escape, alguém precisava sobreviver, então que fosse o cheiro do mijo — Onde ele está? — pergunta o Manco assoprando em sua nuca enquanto o hálito de pólvora apertava o guri erguido do chão
—        Fala ou a mãezinha vai dar um passeio... to precisando de uma escrava preta.
Nem respirava... — E fica quietinho ou a gente volta pra buscar a putinha da mãezinha. — estremeceu o corpo para afastar aquela angústia. Naquele pequeno tempo de olhar e não entender, ou perceber de qualquer jeito, apenas uma coisa o menino sabia, o pai tava de coisa com a vizinha. Ele podia desculpar, queria perdoar, mas e a mãe, não ela não ia aguentar. Por isso, quando aqueles homens chegaram juntos, no mesmo tempo do presente no passado e o hálito de pólvora perguntou por seu pai, a resposta estava na ponta da língua
—        O que tu vende nesta mala?
—        Calcinhas, porta-seios bem taludos, lentes e xaropes que acalmam. — olham uns aos outros em silêncio. Estão com caras de poucos amigos e lhe devolvem as palavras com muxoxos — Não vimos nada de interesse.
—        Nem eu.
—        Esse é maluco.
—        Noutros tempos, o pau roliço iria comer. — o hálito de pólvora o domina. O mijo lhe escapa perna abaixo. Ora, ora, nem tão cegos nem tão inofensivos. Mascarados. Confiantes. Retirou da mala a máquina automática de atirar. Estavam prontos. Não quis pôr em prática as ideias extravagantes imaginadas, tantas e tantas vezes, ano após ano, enquanto ia crescendo e esquecendo, nenhuma vingança é ingênua. As súplicas da vizinha. O seu dedo apontando para algum lugar, qualquer lugar, só queria aqueles homens longe da sua mãe, o esconderijo do papai. O paraíso destruído. Apenas, mirou e atirou. Primeiro um tiro certeiro entre o escroto e o rabo — Esse é por mim.
O Socador gemia com as mãos entre as pernas afogueadas de vermelho, deviam estar coradas da vergonha de ameaçar criancinhas e matar seus pais. O reparador retornou a mirar — Esse é por papai.
Fez explodir a cabeça do Desconfiado — Um furo entre os olhos... perfeito.
Elevou a mira na direção do Manco que fugia de costas, caindo e levantando, mijando por tudo — Esse é por mamãe.
E arrancou a perna que não manquitava. Estavam irrompidos. O sangue derramado escorria entre a superfície das pedras esverdeadas de musgos esquálidos e a sola dos coturnos, nada daquilo fazia sentido, os musguentos feios continuavam crescendo nas umidades e árvores, indiferentes ao destino dos atormentadores. Os musgos também escolhem o que querem ver foi a imagem que lhe ficou. Saiu a coxear. Já não estava mais abatido — É só isso?
—        É.
—        E as lentes que veem com clareza?
—        Outro dia. — os três miseráveis retornaram para seus jogos de bolas. Foi misericordioso ou covarde, não sabe. Não descobriu se está atrás da vingança sem importância ou justiça reparadora, essas duas caminham muito pertinho. Eles continuam indignos. Fingidos de esquecidos. Muitos descansam por agora. Onde quer que estejam.  Fechou o malotão de mão e saiu dali. Fingia que não era o que era: um perna de pau matador.
Quando acorda, as claridades do dia ameaçam os últimos vestígios da noite. Adormeceu ao lado do pai, protegendo sua morte. As lembranças lhe enchiam a cabeça de pesadelos. O gosto amargo de pólvora o devolve a realidade que resiste longe dos sonhos. Teve um pai desaparecido, hoje, tem um pai morto e enterrado como mendigo. Tem uma mãe em desaparecimento, junto com seu outro pai, e uma irmã presa e torturada junto com seu marido. Precisa um plano e agir rápido. Resolve usar da chantagem. Ameaçar revelar a morte do seu pai, talvez traga para a vida sua mãe
—        Isso é maluquice, repete para si mesmo, esses caras não estão nem ai, eles são canalhas e hipócritas. — mas é o melhor plano que pode pensar em tão pouco tempo. As suas chances são quase nenhuma. Sabe que nem mesmo vela acessa para o negrinho do pastoreio ajuda neste caso. E como ele, um torturador de sangue nas mãos, haveria de se pôr de joelhos para rezar? Não tinha jeito, esse assunto precisava conserto de especialista. Manda para o delegado Calçacurta cópias dos dossiês. Supimpa está convencido que o delegado ordenará a sua busca e apreensão. Então, os espera.
Não demora e já está de retorno ao porão. Conhece as técnicas. Não pede, não suplica, encara a morte de frente. Ainda é um deles. O delegado entra na sala — Quem você está cobiçando, meu filho?
—        Quero a minha gente de volta.
—        Isso não está em minhas mãos.
—        Eu não acredito nisso.
—        Você não acredita nisso? Em que o guri acredita?
—        O delegado viu o dossiê? — olhou nos olhos do seu mestre e carrasco. Os dois sabiam que a cama da Clara iria esfriar das suas carnes
—        O que você quer com essa merda toda!
—        Mando para os jornais...
—        Torne público! Divulgue! Ninguém se importa com um bando de macacos! — vira suas costas ao metido. Lança um olhar definitivo ao carcereiro. Sai em assobio de desforra
—        Essa coisa de cornos na testa não me cai bem. — até já sente vontade nas carnes de estar em casa. Por certo, a sua Clara estará mais atenta ao seu delegado recém promovido
—        Chuparracha!
—        Sim senhor, general!
—        Chama essa gente com a papelada de adoção.
—        Alguma criança em vista, senhor?
—        Uma menina, as outras a gente distribui. — a filha dada que não se olhe os dentes...

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