sexta-feira, 20 de julho de 2012

Todos pecam, minha filha

Becos sem saída - O nascimento


V
baitasar
Os gritos da Memória acordaram os ouvidos pelos corredores do labirinto, passavam pelas fendas das portas, abraçavam o comboio das mães e escoavam pelas placentas, barrigas cheias de polvos para nascerem ou desaparecerem anônimos pelos becos sem saídas. Miseráveis. Empurrados para longe da fartura. Alvos da virtude cristã que leva ao arrependimento dos próprios pecados: a expiação que repara as faltas — Padre... eu errei.
—        Todos pecam, Memória.
—        Preciso do perdão.
—        Reze muito. — Só?
—        Minha filha, se você quiser muito, venha nos ajudar com o sopão da caridade.
—        Eu venho. — Deus te abençoe. — no fundo dessa aparência de humanidade, não enxergam além de si mesmos.
Gritos chamavam por socorro, berreiros comuns em tempo de nascimentos. Não se escondiam
—        Doutor... — Sim, enfermeira. — esse era o doutor plantonista, acabado de fazer ajutório de puxar os filhos da Cariciosa e do Manualdo, acabado consigo mesmo e necessitado de um tempo de ajeitamento, mas plantonista não tem outro jeito que ir de cama em cama resolvendo as charadas, escutando as queixas, atento ao diz que diz dos sintomas
—        A paciente do leito 24 está muito agitada.
—        Fique tranquila, são apenas berreiros de atenção.
—        Mas ela está muito inquieta.
—        Também tenho ouvidos, enfermeira. — talvez não seja descaso com a boa vontade de bem atender quem lhe necessita, o cansaço também cobra da vontade a prontidão de se aliviar, todos são assim, um pouco mais ou menos, cada um sabe as linhas com que se cose, mas a diferença fica na humildade daqueles que retomam a si mesmos, pedindo desculpas e parando para ouvir, de tudo o jeito é capaz
—        Meu nego, chama a Socorro...
—        Minha preta, não dá, ela é parteira e estamos num hospital. — Quero ir pra casa.
—        Não pode, é difícil de entrar, mas depois que entra só sai depois de consertada.
—        Ou estragada... vamos, me leva até a Maria Socorro, eu não tenho nada estragado.
—        Mas pode ficar... — O que é isso homem, ta de maueza?
Manualdo ia às correrias, reconhecido dos gritos da Memória, aonde não chegava a dor e o desespero, chegava o grito da Avó. Precisava sair do INAMPS para chegar às indigências, passar pela segurança. Caminhava pensando no jeito para ir de um lugar para o outro — Há duas palavras que abrem muitas portas: puxe e empurre. — e momentos que deixam encantadas as coincidências de favorecimento, a sorte precisa ser aproveitada enquanto está a favor. O segurança era o baixinho narigudo que estava de quebra-galho. A profissão do baixinho era quebra-galho — Passe... mas vê se não conta o milagre, nem diz o nome do santo — É na necessidade que se conhece o amigo.  — Largue mão desse refrescamento e desapareça daqui. — o Manualdo fez o ordenado e entrou para o lado das indigências. Não foi difícil seguir o rastro da falação
—        O que está acontecendo, Avó? — Quero a Socorro! — a mulher do Ogum estava deitada em uma maca, empurrada contra a parede do corredor. Esperava pela sua hora de fazer nascer outro encardido. Não tem jeito, os encardidos precisam esperar na fila, tanto antes como agora: a pinta que o galo tem, o pinto nasce com ela
—        Mas Avó, estamos num hospital... — Hospital! — grita às alturas, num mais profundo desdém — Estou no corredor da indigência de ajuda. — o bugre olhou para o lado, para o lado que o Ogum esperava em pé, escondido da luz, escorado na sombra da parede — O que é isto, Ogum? — Manualdo, o INAMPS só atende os segurados.
—        Eu ti falei pra assinar a carteira. — Chega, mestiço, agora não adianta. — nesse meio termo de gritos e sussurros, as dores se chegavam com mais ardor, sempre achei que de árvore velha não se faz muda, mas enfim, o serviço está aí e tem que ser concluído com sucesso
—        É agora! — A enfermeira disse que demora...
—        Chama alguém! — Já vou.
—        Inferno! Eu supliquei àquele capacho de merda: me leva até à Socorro! Não me deu ouvidos, tinha ordens do Cristurano. — o bugre saiu pelos corredores, buscando ajuda do doutor plantonista e deixou Ogum nos afazeres de acalmar a Avó. Por ali, tudo parecia um campo de refugiados. Muitos esperando ajutório que demorava além das dores. Na dobra de uma esquina daquelas paredes brancas foi encontrado por Maria Socorro — O que a senhora faz por aqui?
—        Estou atrás da minha menina, é o chamado de Deus, por mim.
—        A senhora vem comigo, os mais antigos sabem mais. — quando entraram no quarto, onde as gestantes filantrópicas esperavam pelos trabalhos, Maria Memória exclamou entre lágrimas, eram as lágrimas que lhe tinham restado para cantar — Socorro, me ajuda... ajuda meu bebê.
—        Calma, minha filha, vim aqui pra isso, ajudar em nome do Nosso Senhor.
—        Demorou, Socorro. — Vim caminhando... — os olhos da Memória acusavam Ogum que lhe sentia em calafrio, é bem isso, cada um sente o frio conforme a coberta, mesmo que as intenções fossem só de ajudar e tivesse tudo calculado
—        Como eu ia saber? É sempre assim: depois da burrada todos sabem como se teria evitado. — Tu, mais que os outros sabe que cálculo de pobre é azar.
—        Deixa isso pra lá, minha filha, em caldo derramado não se faz pirão, vamos rezar e pedir proteção.
—        Que Deus te ajude e a mim não desampare. — Cada um faça por si, que Deus fará por todos.
—        Amém. — e começou a cantar canções de conforto do candomblé que desfez a zanga de Maria Memória, ela sabia que cantiga velha valia a pena entoar, mas as cantigas da África soam mágicas, como todo mundo que já foi criança
Ori, ori axé,
Axé ori ô!
Odoiá!
—        Que Oxalá e Iemanjá nos abençoe... — a parteira Socorro não tinha pressa, deixava a natureza agir, mas não arredava o pé do alcance da mão ou dos olhos. Esperava com a paciência e a perseverança de quem tudo alcança. Estava ali para proteger aquele que nascia e a mãe. Sempre foi assim a sua vida inteira.
O pai foi mandado sair, ela não precisava da atrapalhação de homem em desmaio.
Nas passagens esporádicas das enfermeiras do plantão, auxiliares metidas de chefe, as mulheres em redondeza de gente entranhada e pronta para brotar metiam a parteira em esconderijo, até que a auxiliar das enfermarias observou diferença — A mãezinha resolveu se acalmar? — E tem outro jeito? — Não. — assim que a auxiliar das enfermagens sumia pelos corredores daquela hotelaria de baixa qualidade, Socorro reaparecia com suas cantigas e histórias. As outras em serviços de nascimentos passaram a colocar os ouvidos da atenção na voz daquela senhora iluminada — Minhas filhas, vocês sabem que as parteiras são mencionadas na Bíblia?
—        É? — duvidaram em declamação conjunta, eram vozes sem eco nos ouvidos das pessoas de bem. As pessoas de bem são assim mesmo, surdas — Querem ouvir?
—        Queremos. — e aquelas mulheres relegadas ao atendimento filantrópico, isto é, caridoso sem carinho, se puseram a ouvir - entre caretas e sussurros de gemidos - atentas da experiência que ensina — O Faraó do Egito disse às parteiras dos hebreus, uma das quais se chamava Sifra e a outra Fúa: "Quando ajudardes as mulheres dos hebreus a darem à luz, olhai o sexo da criança. Se for um menino matai-o. Se for uma menina deixai-a viver". As parteiras, porém, temiam a Deus. Não fizeram o que o rei do Egito lhes ordenara e deixaram os meninos viver. Então o rei do Egito lhes convocou e lhes disse: "Por que fizestes isso e deixastes viver os meninos?” As parteiras responderam ao Faraó: "As mulheres dos hebreus não são como as egípcias; são cheias de vida, antes de a parteira chegar já deram à luz". Deus tornou as parteiras eficazes e o povo se multiplicou, se tornou bem forte. — no final da história, Maria Memória fez sinal que havia chegado a hora
—        O nosso Deus é grande e o mundo é largo, que seja uma boa hora.
—        Amém! — foi a confirmação de todas. Maria Socorro lhes ensinara a oração de São Bartolomeu e rezavam antes do parto
—        Senhor São Bartolomeu, se vestiu e se calçou, seu caminho abençoou. — Por onde vai senhor São Beto?
—        Vou em busca de Vós, Senhor!
—        Tu comigo não irá
tu na casa de Maria Memória ficará
na casa em que vós estiverdes
não morrerá mulher de parto
nem menino de abafo
nem fogo levantais
paz, dom e misericórdia.
A parteira largou as atenções das histórias e passou a comandar de maneira metódica os momentos que se vieram, um por um — Gostaria que uma de vocês conseguisse toalhas e lençóis limpinhos. — Deixa pra mim.
—        Alguém poderia conseguir um pouco de afugentamento da claridade. — as luzes iam sendo desligadas — A criança não há de querer tanta clareza.
Logo, aquela que foi em busca de panos limpos, estava de volta, arrastava os pés e caminhava com as pernas abertas, trazia em uma das mãos algumas toalhas com jeito de novinhas — Chega? — Está ótimo. — todas fizeram silêncio, enquanto Socorro conversava com Memória. Era uma conversa de oração
—        Tudo passa pela calma do coração e clareza da mente.
Socorro pediu que Memória ficasse de cócoras. Duas das companheiras de quarto estavam a lhe amparar pelos braços, enquanto a parteira ficava de frente, com as mãos na forma de bacia para aparar o bebê. Começou o nascimento — Isso menina, um pouco de força... — Ai!
—        Outro tanto de coragem... — Ai!
—        Ele quer vir pra nós... — Ai!
—        Mais um pouco... — ninguém se animou pedir qualquer explicação, apenas observavam e rezavam, tudo estava entregue nas mãos de Deus e daquela mãe antiga — Ai!
—        Tudo bem, descansa. — essa Socorro era a única que faria Memória descansar pelo tempo de nascimento, um andamento extraordinário da vida, cheio das esperanças que fazem uma mulher seguir em frente, mesmo pisando em brasas e com a alma retorcida — Ai!
—        Eu já estou sentindo o nosso bebê! — senhora de respeito e reconhecimento nas dores de cada uma. Jamais perdoou o cansaço e os desvios dos tolos que preferiam os atalhos das epidemias de cesáreas, gente faminta de lucros — Ai!
—        Ele está vindo, minha menina, ele está vindo! — aquele que vem em nome do amor deveria ser sempre bem recebido, sem açodamentos — Ai!
—        Mais um pouco... assim, menina... — só mais um pouco de força e tudo se faz de novo
—        Ai, minha mãe!
—        Ela chegou! — hoje, essa parteira convida que entrem nessa casa para olhar os tormentos do seu povo, dores antigas de luta e doçura.

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Leia também: 
22 - As lágrimas alagavam 

24 - Cada um tem o jeito de matar as pulgas

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