quinta-feira, 26 de julho de 2012

Entre fuscas e opalas

Becos sem saída - Tuca e Farofa


II
baitasar
—        Minha filha, você pega açúcar mascavo e aperta na xícara, depois numa panela com bastante água, coloca as batatas e deixa no fogo até cozinharem e ficarem macias. Escorre, deixa esfriar, retira a casca e corta tudo em quadradinhos. Numa outra panela grande, aquece a manteiga, junta as maçãs e cozinha em fogo baixo, mexendo sempre, por 3 minutos ou até ficarem macias. Daí, você aumenta o fogo, adiciona o suco de limão, o açúcar mascavo, a canela e o vinho, e deixa ferver. Dá pra abaixar o fogo e cozinhar por mais 3 minutos. Pronto, é só colocar as batatas e misturar delicadamente por 2 minutos, tendo o cuidado para não quebrá-las e servir morno. — enquanto a Memória ensinava a tal receita, Cariciosa debruçou sobre o parapeito da janela, olhava para o céu, recordava as explosões e os gritos da alegria das pessoas, as surpresas do contentamento
—        Às vezes a gente se sente como gente. — a mãe olhou à tristeza da filha — Por quê?
—        A gente fica importante quando pode ver essas coisas bonitas.
—        Não foi pra ti que fizeram essa festa de cinema...
—        E daí? Ogum, a praça ainda é de todos. — o pai emprestado escuta a filha postiça, toma outro gole da cerveja gelada, o corpo foi amolecido pela bebida - parece despertencido dele - e antes de retrucar pensa que às vezes é melhor ficar quieto, em terra de cego quem não tem um olho é porque perdeu o outro — É?
—        E não é?
—        Menina, a miséria da favela só vê carnaval, futebol e foguetório...
—        Ogum... chega dessa conversa de lugar nenhum à nada.
—        Existe um mundo melhor, minha filha, mas é caríssimo. — Chega! Vamos comer estas batatas. Já esfriaram, mas estão deliciosas. — a Memória se coloca no meio da discussão, não é noite de banzé bobo, coisa de nada até lugar nenhum. É madrugada de deixar as palavras de tristeza voar para a lonjura do sem fim, esses queixumes que só voltem amanhã, mas ninguém precisa que voltem. Dá um ponto final as lamentações
—        Minha filha, em noite de Natal esse homem fica muito triste e chato, muito chato!
—        Não é tristeza, mulher... — É o quê, então? — o seu negão fica em silêncio, parecia que tinha a resposta na ponta da língua, parecia que tinha a mágoa na mira dos olhos, parecia que o sonho não acabava enquanto ainda tinha batata-doce com maçã e não amanhecia
—        A gente faz uma terra e ninguém abre os braços. — Negão, deixa de queixume que a boca do pobre só se enche com a terra da sepultura, isso é assim.
Ogum clareia os olhos para sua mulher — Isso é assim?
—        Não deveria, mas é. E ninguém vai mudar.
Manualdo coloca o copo sobre a mesa, parece que vem com discurso de improvisação duvidosa, mas só consegue pedir — Tem mais cerveja?
—        Agora chega! Vocês passaram a noite bebendo.
—        Quero beber até cair.
—        Isso é que não, bêbado vestido é sempre borracho... — pronto, o bugre despertou o instinto da Cariciosa, ela não sabe de onde vem sua aversão de bebida alcoolista — ... antes cautela que arrependimento, cachaça não dá juízo.
—        Minha preta, não sou nenhum idiota que não sabe o tempo de parar, de mais a mais, é só uma cervejinha.
—        Às vezes, Manualdo, é melhor ficar quieto e deixar que pensem que você é um idiota do que não deixar nenhuma dúvida.
—        Parece que a sua filha decorou um monte de merda!
—        Ouviu? É a cervejinha falando... — já passa da uma hora da manhã, as crianças continuam escorregadas nas camas. Sonham abraçadas aos presentes. Memória e Cariciosa limpam os pratos e copos sem serventia. Lavam para não deixar vestígios de comida para baratas. Ogum e Manualdo limpam a última garrafa de cerveja. Banham a garganta para não deixar vestígios de sóbrio. Estão bebãos. Já passam das três horas da madrugada quando as luzes são apagadas nas duas casas — Boa noite!
—        Boas noites... — a festa do Natal acabou.
A Cariciosa põe olho de curiosa no Manualdo jogado de barriga na cama, babando pela boca aberta e ventilando pela cueca. Dorme a sono solto. A jovem mãe revira os olhos para cima e agradece a graça divina. O marido não é bêbado por falta de esforço, controle das vontades — Obrigada, minha Senhora, Mãe de todos, por tirar da cabeça do Manualdo a vontade de beber.
Na manhã seguinte, a ressaca está hospedada em cada um dos bebões, apenas a necessidade de sobreviver os faz levantar, caminhar e agarrar os restos da festa. Não falam. Não abrem os olhos. Respiram e abocanham as sobras. Dormir e dormir. As mulheres rodopiam na volta das crianças e os homens rodopiam as cabeças.
Quando Manualdo decide que apenas sobreviver não basta, levanta da cama. O suor lhe escorre pelas costas, desce pelo vinco e escapa nas coxas abaixo. O calor já passa da metade do dia e logo inicia a cair até o leve resfriamento da noite. O borrachudo do Natal hesita entre coisa alguma e nada. Enfim, resolve que deveria manobrar a bicicleta e guardá-la pendurada. Foi o que fez. Escolheu a hora de sol mais intenso, alguma coisa do tipo duas horas da tarde. Tudo a pino. Seu jeito de penitência.
Abre o portão, olha para os lados, nenhuma alma viva ou morta, murmura entre os dentes e com a língua amortecida de tão amarga — Até gente morta deve estar estirada em alguma sombra de cruz. — sai pedalando. Ou tentando: caiu duas vezes e se decidiu por entrar com a bicicleta. Só queria algumas pedaladas para desenferrujar as pernas e o cérebro. Fazer a cerveja escorrer pelo corpo. Depois do desfeito, os olhos vão do portão para os lados, espia a solidão daquele mormaço, se prepara para fechar a porteira quando um cachorro para na sua frente, um cachorro desorientado, um cachorro babão. Outro bebão da noite acabada. Uma maneira perdida de viajar. Manualdo faz o aceno mecânico de incomodado — Sai daqui! Caminha adiante cão marrado, acha outro asilo.
Para no meio do gesto, reconhece o bicho e o par de fitinhas presas em suas orelhas, repreende a si mesmo — Manualdo, seu bugre emburrado, não sabe reconhecer uma dama? — aquele é um bicho conhecido de outros tempos: Tuca, a cadela que a Cariciosa leva para passear. A bichana está com quadras e quadras de distância. Moram em vilas diferentes. E ali está a cachorra — Tuca! — passando naquele exato instante, num calor infernal. Chama o animal pelo nome
—        Tuca! Tuca!
A cadela olha na sua direção e continua caminhando perdida. Sem destino. Desorientada. O bugre vai a seu encalço. Deixando tudo aberto. Não sabia bem porque, mas não podia perder a Tuca de vista. Serviço extra de cortesia. Cuidando para não assustá-la e sem nenhum jeito de competir com aquela correria de medo e perdição.
Nesse tempo de falar e chamar e perseguir a desatinada, ele recebe socorro. Cariciosa vem na correria e se põe na perseguição da extraviada. A mulher está fazendo hora-extra, pois cuida da bichana nos passeios e agora lhe corre atrás em missão de recuperação. O bugre grita em aviso — Cuidado, não assusta a cachorra!
A mulher segue em frente, o marido lhe grita avisos — Pensa que a cadela logo para, quem corre tanto logo cansa. — não essa Tuca, ela está fora do lugar e desajuizada, é assim mesmo, gente ou bicho em jeito de desamparo fica surdo e vê malquerença por toda parte. Olha e não enxerga, escuta e não ouve, caminha e para, e não sai do lugar, tem fome e não é da comida. Gente ou bicho é tudo igual quando estão apartados da boa vida
—        Tuca! Tuca!
O bugre lembra que, logo adiante, atravessa uma avenida de muito movimento e, por certo, aquele bicho criado em casa, não vai saber se esquivar e desviar das viaturas. Elas, Cariciosa e a cachorra, iam bem adiantadas, ele as seguia como podia. Atrasado. Com os pulmões repletos do ar quente daquele dia ensolarado. Desejoso de estar de bicicleta ou na empilhadeira. As pernas pesando mais que podia levantar e carregar. A cabeça lateja, repleta das bebidas de ontem. Os olhos não conseguem alcançar além dos pequenos arbustos. Tudo impede sua visão. A claridade, os olhos encolhidos da bebedeira, a correria das duas, os arbustos, a distância já corrida, o coração que lhe vinha à boca e retornava ao peito, a dormência das mãos e o inchaço das pernas. Queria estar na direção da sua empilhadeira. Vê quando sua Maria entra na avenida e um carro enorme, desses gigantescos, todo preto, usa da buzina e dá uma freada brusca. O coração está aos pulos e começa o seu descontrole. Esgotado. Apressa mais seus passos.
Naquela esquina, existe terreno baldio com matos de capim e árvores, não consegue ver além dos arbustos da grama ruim. Acha que corre. Não sei. Nem ele. Quando consegue espichar seus olhos lá estão as duas. Paradas no meio da avenida, entre fuscas e opalas. Os carros acuados. Um jipe, desses que não vê mecânico faz tempo, podre de velhice e ferrugens, não consegue controlar sua velocidade e bate no preto. Está armada a confusão.
Manualdo se aproxima, vê que a esposa mantém a jovem e assustada Tuca deitada enquanto a acaricia, depois a pega no colo. Cariciosa não deixa escapar da segurança do seu abraço a cachorra. Estão protegidas. O animal não reage mais, se deixa carregar. A boca aberta, a língua caída da boca, os olhos arregalados. O coração galopa pelo seu peito peludo. Pêlos brancos com manchas amareladas. Estão salvas. Manualdo, também. O coração quase lhe fugira em desatino, mas já lhe obedecia. Está acalmado.
Os três se afastam das discussões sobre culpas e desculpas que continuam na avenida dos automóveis. Os carros batem e as pessoas brigam. Desatino antes e depois.
Hoje, Padre, entra nessa casa comigo que vou te mostrar as dores antigas.

_____________________________

Leia também: 
27 - Receita antiga 

29 - Os nós dos dedos esfolados

Nenhum comentário:

Postar um comentário