sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Baudelaire - Pequenos Poemas em Prosa: I - O Estrangeiro

Baudelaire - Pequenos Poemas em Prosa



Sinopse


“Quem de nós não sonhou, em dias de ambição, com o milagre de uma prosa poética, musical, sem ritmo e sem rima, bastante maleável e variada para adaptar-se aos movimentos líricos da alma, às ondulações da fantasia, aos sobressaltos da consciência?” — escreve Baudelaire ao contemporâneo e amigo Arsène Houssaye, referindo-se aos sentimentos que lhe inspiraram este livro. 
E essa ambição foi realizada, plenamente realizada, malgrado o modesto receio em contrário manifestado pelo autor. São verdadeiros poemas em prosa os pequenos contos aqui reunidos. Um grande e profundo sentimento poético, poderosamente auxiliado por uma imaginação fertilíssima e por um estilo sempre diverso e cheio de ritmo, é vazado em toda a extensão destas páginas. 
Amor, ternura, sonho, ambição, bondade, angústia, bonomia, egoísmo, ciúme, sofrimento, em suma, todas as múltiplas variações da psicologia do poeta aqui se refletem em seus grandes momentos. 
Não será, talvez, um livro genial; mas é certamente, e antes de tudo, da primeira à última linha, um grande livro humano, acentuadamente humano, como muito poucos.





A ARSÈNE HOUSSAYE (1)

Meu caro amigo: Envio-lhe um pequeno trabalho do qual não se poderia dizer, sem injustiça, que não tem cauda nem cabeça, porque nele, ao contrário, tudo é ao mesmo tempo cabeça e cauda, alternativa e reciprocamente. Peço-lhe considerar as admiráveis comodidades que esta combinação a todos nos oferece, a você, a mim e ao leitor. Podemos interromper onde quisermos: eu o meu sonho, você o manuscrito, o leitor a leitura. Não quero suspender a vontade de parar do leitor no fio interminável de uma intriga superfina. Tire uma vértebra, e os dois pedaços dessa tortuosa fantasia tornarão a juntar-se sem dificuldade. Pique-a em numerosos fragmentos, e verá que cada um pode existir à parte. Na esperança de que alguns destes fragmentos sejam bastante vivos para lhe agradar e o divertir, ouso dedicar-lhe a serpente toda. 
Tenho uma pequena confissão que lhe fazer. Foi ao folhear, no mínimo, pela vigésima vez, o famoso Gaspard de la Nuit, de Aloysius Bertrand (2) (não terá um livro que você, eu e algum dos nossos amigos já conhecemos, todos os direitos de chamar-se famoso?), que me veio a ideia de tentar alguma coisa de análogo e de aplicar à descrição da vida moderna, ou antes, de uma vida moderna e mais abstrata, o processo que ele aplicara à pintura da vida antiga, tão estranhamente pitoresca. 
Quem de nós não sonhou, em dias de ambição, com o milagre de uma prosa poética, musical, sem ritmo e sem rima, bastante maleável e variada para adaptar-se aos movimentos líricos da alma, às ondulações da fantasia, aos sobressaltos da consciência? É sobretudo da frequentação das cidades enormes, do cruzamento de suas inumeráveis relações, que nasce a obsessão desse ideal. Você mesmo, meu caro amigo, não tentou traduzir numa canção o grito estridente do Vidraceiro e exprimir numa prosa lírica todas as desoladoras sugestões que esse grito envia às mansardas, através as mais altas brumas da rua? Mas, para falar a verdade, receio que a minha ambição não tenha sido feliz. Mal comecei a tarefa, percebi não só que estava muito longe do meu misterioso e brilhante modelo, mas ainda que fazia alguma coisa (se isto pode chamar-se alguma coisa) de singularmente diverso, circunstância que sem dúvida orgulharia qualquer outro que não eu, mas que só pode humilhar profundamente um espírito que considera como a maior honra para um poeta a justa realização do que projetou fazer.

Afetuosamente,


CHARLES BAUDELAIRE





I

O ESTRANGEIRO 

— Quem mais amas, homem enigmático, responde: teu pai, tua mãe, tua irmã ou teu irmão? — Não tenho pai, nem mãe, nem irmã, nem irmão. 

— Teus amigos? 
— Você emprega uma palavra cujo sentido até hoje desconheço. 

— Tua pátria? — Ignoro a que latitude está situada. 

— A beleza? — Eu gostaria de amá-la, deusa e imortal. 

— O ouro? — Odeio-o tanto quanto você a Deus. 

— Que amas então, extraordinário estrangeiro? — Amo as nuvens... as nuvens que passam ao longe... as nuvens maravilhosas!



II

O DESESPERO DA VELHA 

A velhinha encarquilhada ficou toda contente ao ver a linda criança a quem todos faziam festa, a quem toda a gente queria agradar: linda criatura, frágil como a velhinha, sem dentes e sem cabelos como a velhinha. 

Aproximou-se, sorrindo-lhe e fazendo-lhe afagos. 

Mas a criança, espantada, debatia-se sob as carícias da boa mulher decrépita e enchia a casa de gritos. 

Então, a boa velha retirou-se na solidão eterna e, chorando a um canto, disse consigo: — Ah! Para nós, velhas fêmeas infelizes, já passou a idade de agradar, mesmo aos inocentes; e causamos horror às criancinhas que queremos amar!



III

CONFISSÃO DE ARTISTA
 

Como são penetrantes as tardes de outono! Penetrantes até à dor! Há certas sensações deliciosas em que o vazio não exclui a intensidade. E não há ponta mais acerada que a do infinito. 

Grande delícia, mergulhar os olhos na imensidão do céu e do mar! Solidão, silêncio, incomparável castidade do azul! Pequena vela a tremular no horizonte, cuja fraqueza e isolamento imitam minha irremediável existência. Melodia monótona das ondas. Todas essas coisas pensam por mim, ou eu penso por todas: na grandeza do sonho, o eu logo se perde! Pensam, repito, mas musical e pitorescamente, sem argúcias, sem silogismos, sem deduções. 

Todavia, esses pensamentos, que partem de mim ou se precipitam das coisas, logo se tornam demasiado intensos. A energia na volúpia cria uma inquietude e um sofrimento positivos. Meus nervos, tensos demais, dão apenas vibrações agudas e dolorosas. 

E agora a profundeza do céu me consterna; exaspera-me a sua limpidez. Revoltam-me a insensibilidade do mar, a imutabilidade do espetáculo... Ah! Será preciso sofrer eternamente, ou evitar eternamente o belo? Natureza, impiedosa feiticeira, rival sempre vitoriosa, deixa-me! Não tentes os meus desejos e o meu orgulho! A contemplação do belo é um combate em que o artista grita de pavor antes de ser vencido.



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Charles-Pierre Baudelaire (Paris, 9 de abril de 1821 — Paris, 31 de agosto de 1867) foi um poeta boémio ou dandy ou flâneur e teórico da arte francesa. É considerado um dos precursores do simbolismo e reconhecido internacionalmente como o fundador da tradição moderna em poesia, juntamente com Walt Whitman, embora tenha se relacionado com diversas escolas artísticas. Sua obra teórica também influenciou profundamente as artes plásticas do século XIX.
Nasceu em Paris a 9 de abril de 1821. Estudou no Colégio Real de Lyon e Lycée Louis-le-Grand (de onde foi expulso por não querer mostrar um bilhete que lhe foi passado por um colega).
Em 1840 foi enviado pelo padrasto, preocupado com sua vida desregrada, à Índia, mas nunca chegou ao destino. Pára na ilha da Reunião e retorna a Paris. Atingindo a maioridade, ganha posse da herança do pai. Por dois anos vive entre drogas e álcool na companhia de Jeanne Duval. Em 1844 sua mãe entra na justiça, acusando-o de pródigo, e então sua fortuna torna-se controlada por um notário.
Em 1857 é lançado As flores do mal contendo 100 poemas. O autor do livro é acusado, no mesmo ano, pela justiça, de ultrajar a moral pública. Os exemplares são apreendidos, pagando de multa o escritor 300 francos e a editora 100 francos.
Essa censura se deveu a apenas seis poemas do livro. Baudelaire aceita a sentença e escreve seis novos poemas, "mais belos que os suprimidos", segundo ele.
Mesmo depois disso, Baudelaire tenta ingressar na Academia Francesa. Há divergência, entre os estudiosos, sobre a principal razão pela qual Baudelaire tentou isso. Uns dizem que foi para se reabilitar aos olhos da mãe (que dessa forma lhe daria mais dinheiro), e outros dizem que ele queria se reabilitar com o público em geral, que via suas obras com maus olhos em função das duras críticas que ele recebia da burguesia.
Morreu prematuramente sem sequer conhecer a fama, em 1867, em Paris, e seu corpo está sepultado no Cemitério do Montparnasse, em Paris.

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Leia também:

Baudelaire: I - O Estrangeiro
Baudelaire: IV - O Gaiato

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NOTAS

(1) Arsène HOUSSAYE (1815-1896), literato francês, autor de várias obras de grande espírito: Quadragésima Primeira Cadeira da Academia Francesa, O Rei Voltaire, etc. 

(2) Aloysius BERTRAND, contemporâneo de Baudelaire, autor das Fantasias e do Gaspard de la Nuit.


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