sexta-feira, 20 de outubro de 2017

38. O Livro dos Abraços - Profissão de fé - Eduardo Galeano

Eduardo Galeano


38. O Livro dos Abraços




Profissão de fé 

Sim, sim, por mais machucado e fodido que a gente possa estar, sempre é possível encontrar contemporâneos em qualquer lugar do tempo e compatriotas em qualquer lugar do mundo. E sempre que isso acontece, e enquanto isso dura, a gente tem a sorte de sentir que é algo na infinita solidão do universo: alguma coisa a mais que uma ridícula partícula de pó, alguma coisa além de um momentinho fugaz. 





Cortázar 


Com um braço abraçara a nós dois. O braço era longuíssimo, como antes, mas o resto tinha se reduzido muito, e por isso Helena o sonhava com desconfiança, entre acreditando e desacreditando. Júlio Cortázar explicava que tinha conseguido ressuscitar graças a uma máquina japonesa, que era muito boa mas que ainda estava em fase de experiência, e que por um erro a máquina tinha deixado-o anão. 

Júlio contava que as emoções dos vivos chegam aos mortos como se fossem cartas, e que ele tinha querido voltar à vida por causa da muita pena que lhe dava a pena que sua morte nos havia causado. Além disso, dizia, estar morto é uma coisa chata. Júlio dizia que andava com vontade de escrever um conto sobre o assunto.




Crônica da cidade de Montevidéu


Júlio César Puppo, conhecido como Lenhador, e Alfredo Gravina se encontraram ao anoitecer, num café do bairro de Villa Dolores. Assim, por acaso, descobriram que eram vizinhos: 

Tão pertinho, e sem saber. Ofereceram-se uma bebida, e outra. 

Você está muito bem. 

Qual o quê... 

E passaram umas poucas horas e uns muitos copos falando do tempo enlouquecido e de como a vida andava custando os olhos da cara, dos amigos perdidos e dos lugares que já não são, memórias dos anos moços: 

Você lembra? 

E se lembro... 

Quando finalmente o café fechou, Gravina acompanhou o Lenhador até a porta de sua casa. Mas depois o Lenhador quis retribuir: 

Te acompanho. 

Ora, não se incomode. 

Mas se é um prazer... 

E nesse vai-e-vem passaram a noite inteira. Às vezes paravam, por causa de alguma recordação súbita ou porque a estabilidade deixava muito a desejar, mas em seguida continuavam na ida e volta de esquina a esquina, da casa de um à casa do outro, de uma porta à outra, como que trazidos e levados por um pêndulo invisível, acarinhando-se sem dizer nada e abraçando-se sem se tocar.




A cerca de arame

A meia-noite da noite, mais gelada do ano chegou, súbita, violenta, a ordem de formar fila. Aquela era a noite mais gelada daquele ano e de muitos anos, e uma névoa inimiga mascarava tudo. 

Aos gritos, debaixo de golpes das armas, os presos foram postos de cara contra a cerca de arame que rodeava as barracas. Das torres de vigia, os refletores atravessavam a névoa e lentamente percorriam a longa fileira de uniformes cor-de-cinza, mãos crispadas e cabeças rapadas a zero. 

Dar meia volta era proibido. Os presos escutaram ruídos de botas correndo e os sons metálicos das metralhadoras sendo armadas. Depois, silêncio. 

Naqueles dias, tinha corrido na prisão o rumor: 

Vão matar a gente. 

Mario Dufort era um daqueles presos, e estava suando gelo. Tinha os braços abertos, como todos, com as mãos agarrando a cerca: como ele estava tremendo, a cerca de arame tremia. Tremo de frio, disse a si mesmo, e repetiu; e não acreditou. 

E teve vergonha de seu medo. Sentiu-se incomodado por aquele espetáculo que estava dando na frente dos companheiros. E soltou as mãos.

Mas a cerca de arame continuou tremendo. Sacudida pelas mãos de todos os outros, a cerca de arame continuou tremendo. 

E então, Mario compreendeu.




O céu e o inferno

Cheguei a Bluefíelds, no litoral da Nicarágua, no dia seguinte a um ataque dos contras. Havia muitos mortos e feridos. Eu estava no hospital quando um dos sobreviventes do tiroteio, um garoto, despertou da anestesia: despertou sem braços, olhou o médico e pediu: 

Me mate. 

Fiquei com um nó no estômago. 

Naquela noite, noite atroz, o ar fervia de calor. Eu me estendi num terraço, sozinho, olhando o céu. Não longe dali, a música soava forte. Apesar da guerra, apesar de tudo, a cidade de Bluefields estava celebrando a festa tradicional do Paio de Mayo. A multidão dançava, jubilosa, ao redor da árvore cerimonial. Mas eu, estendido no terraço, não queria escutar a música nem queria escutar nada, e estava tentando não sentir, não recordar, não pensar: em nada, em nada de nada. E estava naquilo, espantando sons e tristezas e mosquitos, com os olhos pregados na noite alta, quando um menino de Bluefíelds, que eu não conhecia, estendeu-se ao meu lado e começou a olhar o céu, como eu, em silêncio. 

Então, passou uma estrela cadente. Eu podia ter pedido um desejo; mas não lembrei. 

O menino me explicou: 

Você sabe por que as estrelas caem? A culpa é de Deus. Deus gruda elas mal. Ele gruda as estrelas com cola de arroz. 

Amanheci dançando.




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Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989


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37. O Livro dos Abraços - Fuga - Eduardo Galeano

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