terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

histórias davóinha: casarão canela preta 01cp

casarão canela preta



sempre chega a vez de sentá pra conversá
Ensaio 01cp – 2ª edição 1ª reimpressão




baitasar





davó descansou os olhos e abriu um vazio no coração de cada um dos seus amores

desocupou-se

foi mais um aviso aos inquilinos da vida: não tem nada para sempre. mais dia menos dia chega à vez de sentar para conversar sobre a denúncia vazia, a quebra do contrato sem justificativa alguma. não tem outro jeito de ser... há de chegar o tempo de virar lembrança. davó ensinou que as pessoas podem escolher as lembranças do desprezo ou da bajulação para deixarem espalhadas pelo mundaréu: ela escolheu as lembranças da amorosidade, mas sabe que não pode mudar os comentários da memória, nem os olhares das lembrança na vida que passou, Mifioneto, é preciso esperá té qui tudo se perca nas miudeza do pó da terra. O vento vai fazê varredura, a chuva fica encarregá da lavação e o sol queimá tudo té fazê o roçado novo brotá. É assim mesmo, enquanto uns vai... otros vem. O roçado novo toma o lugá do plantado mais antigo, té qui tudo vira pó ou barro pru dono de tudo. O que não precisa é tê descuido com a vida pruqui depois qui ela se vai, ela se foi, não adianta choro nem vela.

uma doce loucura de davó

é simples assim, tudo que é sangue bom da davó carrega os seus conselhos de aviso, a boniteza de ser na vida o que se precisa viver. uma vida com os mistérios da poesia, o encantamento das memórias, os segredos do silêncio, o formigueiro dos cochichos, os xingamentos dos gritos, olhares e abraços, despedidas e chegadas, nascimentos e mortes

ela estava deitada. quieta na cama dos seus amores. parecia que iria abrir os olhos para comentar os lamentos e falar mal das cerimônias preparadas, As vista não carece de se enchê com tanta lamentação do desgosto, é preciso dizê da vida vivida e do contentamento, mais com tanto soluço de choro davó de ocêis vai parecê mais triste qui alegre. Isso não é bão pra modo de fazê a separação da vida dessa carcaça velha. Quero avisá qui faço gosto de encontrá os mais velho.

as tiazinhas já tinham providenciado a lavação da davó com panos e óleos. os cabelos brancos tomaram a forma de muitas tranças, embelezadas por contas coloridas. a cabeça da davó estava livre e os cabelos trançados. cuidaram de não desmanchar o sorriso de amor e paciência na moldura da pele sem rugas. era davó fazendo a passagem do seu feitio. filhas e netas arrumavam um corpo desabitado. o jeito doce e entoado que rezava conversas de alegria com os netos e as netas tinha partido. eu acho que só tinha nele as nossas lembranças davó. não tinha como saber, não tinha como duvidar onde tava davó

quando vestiram davó com um pano grosso e sem graça, sem a cor da alegria, fiz reclamação. disse que davó tinha que ter vestidura fúnebre com mais boniteza

Ela é muito vaidosa.

a tia Vanda respondeu com voz de alicerce que davó foi muito vaidosa. e eu lhe disse que enquanto ela não voasse das asas da minha memória continuava a ser o que foi

É ordem da nêga Laetitia, davó davó da mãinha. Esse jeito simples de vestí é pra modo do Capitão não se perdê de encontrá davó. Ela qué sê vestida pra sê achada.

depois, sentou na cadeira de balanço e pegou-me no colo. sorriu com a latência dos lábios carnudos e chorou a lamentação com as vistas. subi meu olhar até a tia e balancei no seu pescoço. até pertinho da sua lamentação. então, consegui beijar as águas dos olhos. não desisti de reclamar do modo de vestir davó

Tia, os espíritos não podem ver o modo de vestir da avó, ela desocupou da vida e desse corpo, São os olhos de quem fica que veem davó vestida com tristeza, Queria mais contentamentos na apresentação de despedida davó.

Ah, fiudileto, a minha vista só enxerga tempo muito atrás. As minha lembrança da mãinha tem cantoria, aroma da feijoada, cheiro da boca, gosto do beijo, as vista doce, as mão carinhosa, os cabelo arrumado, perfumado. O tempo só volta nas minha vista. A mãinha agora não é mais nossa. Ela já fez despedida antes de perdê o último suspiro.

queria contentar a tia, mas não conseguia manter a secura da vista desarmada. cobiçava a quentura daquele abraço que só as mãinha sabem exagerar. coloquei minha cabeça em seu peito. fechei os olhos, precisava descansar as vistas de vê davó morta. sentia os dedos da tia enfiados no meu lugar de orgulho: o cabelo duro. escutava sua voz sossegada, Fumaça, ocê lembra da vez que tu mais o Tigão, que o Espírito dos Mais Velhos tenham o moleque junto e protegido, deram fumo de corda que não era o fumo de fumá da mãinha?

sorri com as vistas, mas a lembrança do Tigão me fez mais quedo. as duas tristezas se juntaram. era muita saudade junta, muita pergunta sem resposta. davô João não sabia nem nunca confirmou que sabia, mas tinha desconfiança, Fumaça, quando terminô é porque terminô. 


a tia tinha cogitativo de mais confiança, tentava explicar no que acreditava, Os espírito se junta depois da separação das carcaça e senta no chão, na volta da fogueira. Uns esfrega as mão, otros toma um licô da cachaça. Tem os qui caminha e faz reboo com os pé, otros só arrasta daqui pra lá, e de volta, sem zunideira. Os em pé tá esperando a vez de sentá pra conversá. Num tem pressa nem lamentação, eles sabe qui acabô o tempo das providência, chegô o tempo das conversa e do batuque com os antigo de bem antes.

eu não sei de saber bem confirmado, mas gosto de pensar que o Tigão está no colo davó levando xingamento, um pouco por causa do descaso que deu aos aconselhamentos da preta velha, outro pouco porque perdeu a oportunidade de viver um tempo grande de vida. olho os pés davó, ela deve tá guardando o meu lugar de ouvir

Eu lembro, tia...

Lembro de ouví a mãinha chamá os dois moleque. Pasmada com a malcriação!

concordei com a cabeça, eu e o Tigão parecíamos dois guris cagados de medo, A tia sabe como davó sabia tudo e muito mais.

as lembranças da voz davó estava tão viva, mas as nuvens que povoam as lembranças já se ajuntavam

Mifiuneto, senta aqui nos pé davó e escuta com atenção. Sabê escutá é tê muita sabedoria, dá mais mão de autoridade qui sabê falá, queria conseguir lembrar tudo que davó disse, mas as memórias vão ficando embaraçadas com a tristeza, até parece que uma atrapalha a outra. davó gostava de tá sentada fazendo balanço. eu namorava de saber que davó ficava sentada se balançando

Quando ela contô essa história do fumo de corda, ria de tê tosse e engasgá. Só de lembrá chorava de tanto rí, ela me chamou num canto do quarto e disse: Minha Vandinha, tudo qui é gente tinha qui fumá o baseado desse fumo, uma vez, uma outra vez, rí da alucinação de oiá a própria imbecilidade. Mifia, pode creditá que esse mundo ia sê outro.

Tia...

O que ocê qué, guri?

Eu e o Tigão passamos um tempo danado caminhando levinho, escondidos nas frestas. A gente não sabia da aprovação davó, não sabia que ela tinha gostado. Até arrumava mais daquela corda.

Isso prova que ocêis não fazia conhecimento davó de ocêis. Tê medo não é conhecê.

passei a noite no aconchego do colo da tia. a luz amarelada sobre a cabeceira da cama foi testemunha da vida davó. ela lhe reconhecia a utilidade, sempre foi agradecida, Essa luz do tipo fusquifusqui, só mostra o qui é preciso mostrá, tá favô do amô.

até que chegô noite de não deixar o sono davó na escuridão

nos primeiros lamentos do dia, abri os olhos devagarinho. fiquei esticado num incontrolável bocejo. uma das mãos na boca, a outra esfregava os olhos. deslembrei que davó tinha desocupado a vida até que o cheiro da morte me entrou e revelou o homem que eu era. o meu pertencimento. o calor do colo me enrolou na preguiça

Bom dia.

Bom dia, mifiu.

a penumbra no quarto davó parecia mais assombreada que iluminação disfarçada em velório. descobri que aquilo já era um velório. a luz amarelada se mostrava cansada com a missão de vigiar defunto. eu estava exausto. cheguei querer que aquelas despedidas acabassem logo. no instante seguinte, precisei pedir perdão pra davó, ela havia de entender

E davó? — perguntei como se estivesse recém chegado para visita de cortesia

Já se foi...

Pra onde? Desculpe, eu sei que a pergunta é chata e boba, como a tia havia de saber...

Se foi pro lugá de morá com sua gente, com o seu Capitão.

fiquei desapontado com as respostas da tia, queria saber mais, queria se tratado com adulto

A tia não se explica de uma vez só, parece que espera a pergunta pra responder quase nada. Não é justo deixar a solução escondida. Logo a tia que nunca foi de obedecer davó.

Não diz bobagem, moleque. Sua tia esquecia de obedecê, mas nem sempre. Só vez que outra. Isso é bem diferente de sê rebelão. O meu atrevimento nunca foi com davó, sempre foi com minha mãinha.

Então, por que não diz o que aconteceu? Onde tá davó? A cama esvaziou.

Ganhô encantamento quando noiteceu e foi alimentá a vida na outra vida. Ou não quis esbarrá no amanhecê e foi embora com o Capitão. Ocê escolhe... Eu prefiro acreditá que o amô daqueles dois conseguiu se combiná e ressuscitô pra vivê outra vida longe dessa.

Onde já se viu levantar depois de morta? Davó não devia tá no seu ajuizamento das ideias.

O neinho devia tê ficado vigiando a noite, se queria vê pra tê certeza.

O colo da tia foi mais quente que o colo da morte.

Ocê não creditô no acreditá davó, nem lembra o que sonhô. Vive mais triste que a própria dô. Ocê precisa sonhá que o amô chegô de vez pra davó.

Como a gente faz um enterro sem davó presente? Os tiuzin tão esperando pra vê davó de corpo pra visitação. Não sei dizê do acontecido.

Não precisa enterrá o que não morreu. Não carece de se preocupá com os irmão, eles sabia que a mãinha não ia ficá. O que ela queria deixá ela deixô... as lembrança das palavra. Pediu pra ocê não esquecê que a vida vai vivê e não vai fazê ocê sonhá. O sonho é d’ocê, não é da vida.

estava muito cansado, pareceu que levei uma surra, queria voltar para dormir e sonhar da vida até acordar depois que a vida tivesse passado




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