quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

I - General Calçacurta


O cadáver do Calçacurta

baitasar


Esse é o seu cadáver, General.

Não acreditou na própria morte, mas ela está aqui. Tudo acaba General, menos os desmandos dos canalhas. Às vezes demora, mas no fim todos se vão, tudo tem um fim, menos a dor nos vivos que esperam os seus desaparecidos, ferida dolorida, sangria do passado em carne-viva, não tem descanso. Não pedi, mas fui testemunha de tudo aquilo, até que o senhor foi deitado abaixo, nunca acreditou que seria derrotado. Esqueceu que o tempo não apaga tudo, corrói por dentro, espalha as cinzas, afoga, mas não enterra a memória: é um abismo que não afunda. O tempo de outro general... talvez retorne, mas o seu acabou. Queria morrer dormindo, né General, tranquilo e não gritando como os passageiros das suas prisões, é isso, conseguiu. Mas lambuzou a memória dos generais que morreram lutando, frente a frente, no campo heroico das batalhas, o senhor nunca foi o primeiro homem no campo sagrado da luta e jamais o último homem que saiu
─         General Calçacurta!
─         Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém... Estamos aqui para imploramos que a Tua bondade recaia sobre todos nós... e a alma desse homem de coração justo... acolhe Senhor...
Eu sei, ainda descrê do acontecido, mas neste ataúde não sou eu, é a sua carcaça inconveniente que está depositada imóvel. Não tem mais jeito, parece que nem dia de luto oficial o senhor ganha. Li nos jornais, lá no assoalho da página, pequenas notas do seu passamento. Essa gente ou não lembra mais ou lhe querem ver pelas costas, quer dizer, anseiam por o senhor debaixo do tapete do esquecimento
─         Permite que como a Virgem Maria, abençoada Mãe de Deus...
Eu sou a última voz que escuta enquanto a força se desmancha desta cobertura de carne condecorada por cicatrizes venéreas. Isso mesmo, o seu entusiasmo se desarranja como a cera das velas que por certo, algum distraído lhe irá acender. Azar o meu, odeio velas. Tenho asma, a sua doença era outra
─         Os Apóstolos e os Santos de todos os dias que viveram na Tua amizade...
É, eu sei, estou aqui de vela, mas sempre posso abandonar tudo, atravessar a rua e sumir. O General Calçacurta não pode mais renunciar, pois se finou. A vida desobrigou-se do dominador. Ela não tem nenhum sentido, é coisa de ir vivendo e ver no que vai dar. No seu caso, nós já sabemos no que deu, né? Muita porrada e gente desaparecida nas eternidades, também, foram lhe deixar solto, pra fazer o que bem entendesse. Perderam o controle
─         Sejamos contemplados com a Vida eterna e cantemos em Teu louvor...
Eu acredito que desta vida só se leva a nostalgia das saudades pela nossa ausência. Isso mesmo, General, carregamos pro túmulo apenas o pesar dos bêbados que ficam e o amor das putas. Essas não mentem, já sabemos quanto custa antes de usar os serviços de acolhimento. Não querem carinho, nem beijinho, apenas entrar, sair e, antes de abrir a porta, agarrar o preço concordado na cômoda. Não precisa dar adeusinho, nem fazer aceno de despedida, é bem isso, essa gente só tem na preocupação que o senhor não encosta mais no balcão e grita
─         Essa rodada é por minha conta, pode servir!
O puteiro levantava e saudava o General
─         A Ti, Deus Pai Todo-Poderoso, na unidade do Espírito Santo...
Os arruaceiros comunistas apostam que nem isso vai levar. Afirmam que, talvez, com um pouco de sorte, lhe reste o ódio dos comparsas que se foram antes, desaparecidos pelos seus desmandos de espremer as tetas por capricho. Adorava arranjar as coisas segundo as suas vontades e pôr as próprias mãos nos destroços
─         ... toda honra e toda glória, agora e para sempre. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém! Vão em Paz e que o Senhor vos acompanhe.
Não é um ótimo dia, mas é um bom dia. Afinal, tem dia pra tudo
─         Até para morrer...
Eu mesmo não desisti do senhor por dever de ofício. O General pensou que me conheceu. Os seus colegas, General, esperam que eu vá abandonar meu posto. Também não me conhecem. Nem eu me conheço, mas a memória da farda nos diz pra onde temos que ir. O fardamento e a vida militar é que me julgam melhor. Sempre me deram missão do meu tamanho. Não sei o que seria de mim longe do alojamento dos soldados. Aprendi a ser homem dentro das paredes do quartel. Lavar, passar, cozinhar e limpar os banheiros é código de comportamento que carrego pro resto da minha vida. A disciplina e o respeito dos companheiros de farda são tudo na história de um homem. Somos uma associação criada pra proteger a nossa pátria. Tenho muito orgulho desta missão: lutar, defender e obedecer. É um time juramentado pra ajudar uns e outros
─         Morrer se preciso for...
Hoje, sou o guardião que se despede da última missão com o General Calçacurta, por dever de ofício. Não sinto alegria nem tristeza, apenas espero essas últimas horas, como sempre esperei o seu retorno das missões de reconhecimento e controle, no carro, lendo gibi e mastigando chicle. Não tinha maiores desesperos que continuar vivendo. Deixei pro comandante os traumas e insônias. Afinal das contas, todo general deve assumir as lesões da dor moral daqueles que matam por suas ordens. E sofrer quando morrem por seus descuidos e vaidades. Os soldados apenas confiam que o seu general é o mocinho da história. Eles duelam até morrer contra as forças do mal em nome de um deus guerreiro. As estrelas de oficial general lhes dão o caráter divino da infalibilidade, como o Pedro católico. A pedra basilar dos milicos é a disciplina sob as insígnias e os distintivos que anunciam a hierarquia dos cavaleiros da terra. Sempre gostei de acreditar nisso. Quando me sonhava, era um desses cavaleiros de modo gentil e suave. Pronto a salvar qualquer donzela em perigo. Cavalarianos dignos de comandar e inspirar seus homens a morrerem por qualquer causa ou coisa. Infalíveis. Semideuses. Príncipes. Membros de ordenação nobre que procuram aventuras justas. Não cheguei até lá, mas fui perto. Sou cabo e nunca precisei matar nenhum inimigo ou desconhecido.
De qualquer maneira, esse tempo de sonhos já vai longe. Cresci. E como já disse, sou cabo. Não gosto de me repetir, mas muitas vezes é preciso esclarecer que não sou soldadinho raso qualquer, mereço mais respeito. Isso nos deixa parecido, eu também tenho em quem mandar. Tenho governo sobre o Jacaré. Esse é boa gente, mas precisa de algum comando pra tomar decisão. É feito criança. Volta e meia, é necessário mostrar que ele não agiu certo, é preciso ensinar a pensar. Ainda bem que pelo menos cumprir ordens ele sabe. É qualidade que vem do berço, o sujeito tem ou não.
Aprendi com o senhor, General, que existe um tempo de reparos, pequenos oásis de calmaria, onde as pessoas cantam as liberdades que não compreendem. Não sabem o quanto foi dura a luta contra os comunistas. Gente cheia de ódios que comiam crianças e gritavam que Deus não existia. Parece que por esses dias mudaram o cardápio e a fé. É quando precisamos estar alertas: na calmaria. Nos dias de hoje, ficam a dizer aos murmúrios que quem come as criancinhas são os padres. Pura maldade. Assim como não se pode julgar a armada de guerreiros pelo desertor, também não se julga a igreja pelos padres malvados. Esses comunistas são foda.
Sei, por própria experiência, que ninguém acaba consigo mesmo, e as lutas retornam mais na frente sob as botas de outros generais, mas o exército e o inimigo são os mesmos. Precisamos de generais. Perdemos a memória dos desacertos. Não acho que isso seja uma sina, mas a tristeza de lidar com o passado e não aprender que o preço é a vigilância. Cuidar e castigar. É a luta do bem contra o mal que nunca se termina. Nós sabemos disso, e sofremos com essa cruz que carregamos. A incompreensão de todos com a missão de proteger e matar se preciso na defesa da nossa aparência de acostumar-se
─         Viva o nosso jeito de viver!
Isso mesmo, General, me acompanhe neste brinde. Eu sei, estão faltando alguns castiçais com velas e cruzes da crucificação, ainda não tive o tempo de providenciar o embelezamento da sua vigília de corpo presente, já sem a alma. Essa, se o senhor já teve, foi perdida quando o senhor se decidiu pelo caminho de confissões e revelações pelo sofrimento.
Ouço zumbidos de boato, muito diz-que-diz, acusam os seus cochilos depois do almoço. Outros boatos gritam que a sobremesa dos seus almoços eram os assassínios. Vejo nisso um pouco de exagero, mesmo que um ou outro comuna, daqueles dias de tonturas e torturas, continue em desaparecimento. Dois ou três erros não podem destruir a sua imagem de homem justo. Acho até que muita gente escapou e se perdeu, lá por fora. Fugiram da nossa terra por decisão própria. Não precisavam desertar. Foram precipitados. E sabe como é, longe de casa é tudo mais complicado. Eu da minha parte, quando fui convocado pros seus serviços, nunca vi nenhum defunto falecido por bala ou arma branca nas minhas andanças com o General. Nem enrolados pelo pescoço. Caiam porque algum passarinho cantava. Eu teria morrido atirando, alguns acabaram se matando. Cada um, cada um.
Mas, enfim, há-de vir à verdade, pra esclarecer que o General Calçacurta sempre foi louco pelas marxistas
─         Elas têm fogo, Chupa-racha, são umas cadelinhas cabeludas de domar.
─         É mesmo, General?
─         Chupa-racha, elas combatem o tempo inteiro.
Tenho crença que a lenda na volta do General veio recheada de coisas que eram ditas pelos clandestinos da Adega. Frases anônimas, mas, pra mim, o senhor procurava sua Iara, a mulher muito linda, de pele alva e cabelos cor de ouro, que vive nos lagos, nos rios e nos igarapés. Pena que o General nunca procurou com o coração. Usava o pau como um porrete enquanto comia com duas mordidas toda a maçã. Saia dos interrogatórios a dizer sua seleta sobre maçãs e serpentes
─         O homem tem precisão de tirar do mundo os comunas para correr a deitar na cama com as esquerdistas...
E a sua predileta era essa, que recitava levando os dedos ao focinho
─         Quando venho do interrogatório com o bigode esfoliado alguma cabritinha vai reclamar de assadura...
Nem tudo foram força e desesperação. Bobagem. Muita lenda. E, também, não houve tantas que justificassem tanto Deus-nos-acuda. O senhor e os comunas deitavam muita falação por aqueles dias. Guerra de dizer quem podia mais que o outro.
É certo que nunca matei nas suas ordenanças enraivecidas e descontroladas, ficava a lhe levar e trazer das caçadas. O caçador teve prudência de matar apenas o indispensável às suas necessidades, o diabo é que acusam o General Calçacurta de matar por gosto. Os boatos na volta do General nunca param. O tempo já se foi e continuam batendo na mesma ocorrência. Se não fosse tanta raiva até me animava contar algumas histórias do senhor, como aquela do Curupira
─         Posso contar?
Certa vez, já tinha tempo essa correria atrás de comunista, aconteceu de o General ter enfrentado o Curupira. Foram atrás do senhor pra delatar que o guri tinha os cabelos vermelhos, o corpo coberto de pelos e os pés voltados para trás. Foi o que bastou
─         Lembra, General?
Ai de quem fazia estragos inúteis na mata. O moleque se tornava um inimigo terrível. Pelo visto, o pequenino deus não quis se vir das matas pra cidade. Sabia e não sabia do matadouro. O General Calçacurta, assim que soube do guri, se mandou por uns tempos pro mato. Dizem que corria pelos capões com um facão em uma das mãos, gritando
─         Vim te pegar vermelho!
Os relatos e detalhamentos desta guerrilha estão soterrados por um culto secreto, mas o silêncio ficou perdido pelo som das metralhas e das trilhas alargadas pelos facões. O tal guri apareceu e sumiu. Nas cidades ainda se fala nas safadezas do Curupira, mas se faz sigilo das diabruras do General. Os índios do Araguaia encontraram o esqueleto do Curupira sem os pés. Foram cortados. Uns juram que é o Curupira, outros afirmam que sem os pés virados pra trás não se pode afirmar nada. No fim de tudo, o General voltou desta excursão com uma vontade danada de baixar o cacete
─         Chupa-racha, estamos em guerra.
─         Com quem senhor?
─         Com esses comunistas que se recusam aceitar nossa gente no mando da gerência.
Nunca vi razão pra tanto, mas jamais duvidei que a boca fechada fosse o caminho da salvação da minha lavoura. Segui a minha vida, dirigia sem trocar mais palavras que o indispensável. Nunca olhar pelo retrovisor. Sem pressas ou atrasos, os horários foram cumpridos e as missões se terminaram, pro senhor e pra mim. Fiquei na deriva de mim mesmo, sem saber o que sou e acovardado de descobrir. É isso, sou um covarde desmemoriado por safadeza. Não sinto alívio nesse oceano de água salgada sob seu comando. O senhor, General, tocou no meu destino. Talvez, o resgate nunca chegue e, finalmente, eu me deixe afundar escondido lá no profundo do mangal. A lama me gruda os pés desde o dia que aceitei conduzir seu carro de passeios secretos. Concordei porque era importante ser o motorista do General Calçacurta. Homem sem meias medidas. Inimigo dos inimigos. Amigo dos amigos e dos amigos dos amigos. E, aceitei, também por cobiça de pegar um daqueles carros com motor de avião. Estúpido. Jamais precisei usar toda força do engenho, mas rezava pra que, num dia qualquer, o senhor entrasse na máquina dizendo
─         Vamos embora rápido, velocidade no máximo.
Apostava comigo mesmo, mas nunca aconteceu. Entrava e recomendava na maior acomodação
─         Devagar, Chupa-racha. Não ultrapassa os limites da via. A lei é para ser cumprida.
Uma dúvida despencava pelo desfiladeiro do pescoço até o intestino, apenas uma pergunta
─         Qual delas, General? Qual das leis é pra valer?
Nunca perguntei e agora não tem mais graça. E, demais a mais, continuo a fazer pouco uso da garganta. Daqui pra frente, a única regra que o General tem pra cumprir é ficar quietinho enquanto se transforma em nada. E ser coisa nenhuma, General, é como ser soldado, uma carcaça insignificante. Boi de piranha. O guerreiro pelo menos tem o corpo como moeda de troca. O senhor que passou a vida fazendo guerra, chegou ao destino da morte plena por abandono
─         Quem sabe, até chegar aqui, quantos viraram cinza em suas mãos?
─         Cabo, desde quando o poste passou a mijar no cachorro?
─         Por que o senhor nunca me deixou entrar na Adega?
─         Estomago fraco, soldado.
Quando o senhor reaparecia na porta da Adega, com a braguilha arreganhada, sabia que não queria conversa. Sei que o General lembra. Eu descia pela minha porta e corria pra abrir a porta das autoridades. O senhor entrava e sentado no banco de trás alargava sorriso de esperteza. Acariciava o bigode com o polegar e o dedo fura bolo, os levava ao nariz. Ficava por toda a viagem de olhos fechados, acariciando o bigode e cheirando os dedos. As maneiras sempre foram calmas. Não parecia sentir medo de algum perigo. Nunca pensei que fosse acabar. Até a sua queda de competência não foi um tombo. Acabou de ser uma despedida pela decadência do prestígio da sua carcaça. Morte lenta e gradual. Os traumas da sua desistência foram temperados pela paciência e concordância dos paisanos. Tudo veio aos poucos e com o tempo de botar os reservas em campo. O General Calçacurta nem precisou ter preocupação. Tudo ensaiado. Piadista e piada. Os inconformados gritam amordaçados e desfazem da lei das anistias. Não sabem ou não querem esquecer. Estúpidos. Deviam recomeçar suas vidas e esquecer o passado. Curar as feridas. Lamber os esfolamentos
─         Nem tudo são rosas na vida.
─         É isso aí, cabo!
O General foi devorado. Não pelas culpas, nunca soube que as tivesse, mas pelos excessos. Sempre foi um homem de abusos. A começar pelo descomedimento de ter uma perna maior que a outra. Nunca teve a silhueta de mocinho, pelo contrário, sempre ficava lembrando a fera solta que trazia dentro de si mesmo. Enjaulada, mas excitada pelo desejo que tinha de soltá-la
─         Chupa-racha, fazer o certo ou o errado é só uma questão de conveniência.
─         General, existem pessoas boas que jamais farão coisas ruins.
─         Não te engana, soldado.
─         Mas, General...
─         Guri, somos todos muito ruins, apenas esperando oportunidades...
─         E o arrependimento, General?
─         Remorso não basta!
Insatisfação moral e punição quiseram lançar ao General. Desculpe, mas o senhor é um grande filho-da-puta, se safou fácil. Pediu esquecimento e ganhou. Teve uma morte tranquila. Morreu de velho, do mesmo jeito que a gerência dos milicos que sustentou na força. Comeu os rabos que quis e saiu de mansinho, ainda ganha homenagem de herói e deixa muitas viúvas com saudade
─         Bem, General, é o que temos.
─         Não acredito em arrependimentos, nem mesmo na morte.
─         O senhor não acredita na morte?
─         Eu não vou morrer, Chupa-racha, vou estar sempre por aqui... na espreita.
─         O senhor está morto.
─         Tem certeza?
─         Tenho.
─         Pois eu não tenho, Chupa-racha.
Perco atenção da nossa prosa. Olho pros lados e ninguém. Nada além do morto encaixotado. Não é bem como o senhor pensou que ia ser. A vida continua. Parece que outro tempo está começando. Menos disciplinado, com as pessoas mais preocupadas em não sentir medo. Tem hora que fico no jeito de sentir falta do General, em outras acho que já foi tarde
─         Chupa-racha, será que morri?
─         Merda... claro, que morreu.
Tenho um acesso de tosse. Não consegui segurar a expulsão súbita e ruidosa do ar pela boca. Até um peido estrepitoso me sai pelo cu. Sinto muito, General, estou perdendo os meus controles da boa educação
─         Não há de ser nada, Chupa-racha, já presenciei descarregos piores.
─         De qualquer jeito, desculpe.
─         Não se desculpe pelo inevitável. Tem coisas que não se pode impedir.
─         General, só a morte é inevitável.
─         Rapaz, tua ingenuidade me facilita. Vou-te dizer que inevitável é outro golpe...
─         Isso é um sonho desvairado!
─         Rapaz, quem controla o povo nesses dias de hoje?
─         O governo... sei lá, as leis?
─         Chupa-racha, o gado vai conforme a mão do tocador.
─         E daí?
─         Quem controla a televisão, rádio e jornal, diz qualquer verdade inventada...
─         General, essa gente dos jornais não quer isso de golpe!
─         Guri, não me faz rir, outro golpe é forçoso!
─         O povo não deixa...
─         O povo é cabritinho que passeia nas nuvens, dominado pela imaginação do circo e a dor da fome.
 Esse é o defunto dos convidados que irão chegar.
O Calçacurta e as suas sobrancelhas brancas.
Pra esses, o General nunca se foi, têm na memória o morto quando não era morto, enquanto duravam as glórias e os medos do seu passado.
O tempo arrastado vai se passando e os curiosos vêm chegando. Poucos amigos.
Na câmara do velamento não tem conforto. Isso, logo que os convidados chegam ao anfiteatro mortuário não percebem, mas na medida em que o tempo começa a submergir pelos pés apertados em sapatos novinhos, e as cadeiras de couro preto ficam achatadas, o estorvo do desconforto aumenta o desejo de estar longe. Sumir daquela cena de carne desmanchando sem nenhum gemido
─         Ai, meus pés.
A parte carnosa dos corpos vivos esmagando, sentados desconfortáveis, ajeitando-se daqui e dali. É diferente quando o angustiado senta no banheiro pra perder parte de si mesmo, enquanto faz alguma leitura e esquece do incomodo até as pernas adormecidas ficarem sem vontades
─         Ai, minha bunda.
Engraçado como as pessoas resmungam por qualquer coisa
─         Cadeiras desconfortáveis, o General merecia um ambiente mais adequado.
─         O que é mais natural para um morto que o cemitério, penso entre meus dentes de soldado calado.
Até bunda de tanajura não aguenta, mas todo cadáver é conformado, fica imóvel como se todos os gritos de infortúnios tivessem seu uso além do esgotamento da voz e ouvidos. Não dá a mínima atenção. Continua inerte. Nada resta, além daquela esfinge decifrada pela morte. A carne é corroída pelo ácido do andamento. O passado se tornou passado e entrou para a história.

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II - O homem da limpeza

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